Por Paula Guatimosim
Em 2022 houve um aumento de 300% no número de resgates em relação a 2017. Foram 2.575 trabalhadores resgatados (Fotos: @trabalhoescravo) |
No final de fevereiro de 2023, uma notícia estarrecedora deu visibilidade a uma situação inadmissível de ser encontrada ainda no País. Relatava um dos maiores resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão dos últimos anos, realizado em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Na operação, a polícia resgatou 207 trabalhadores que enfrentavam condições de trabalho degradantes para três das maiores vinícolas do País. O caso não foi o único. Do final de fevereiro a meados de março de 2023, houve nada menos que três operações de resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Em 10 de março, foram resgatados 56 trabalhadores em duas fazendas de arroz no município de Uruguaiana (RS). Eles trabalhavam no corte manual do arroz vermelho e na aplicação de defensivos químicos sem equipamentos de proteção. Dez dos resgatados eram adolescentes com idades entre 14 e 17 anos. No dia 2 de março, cinco homens foram encontrados realizando trabalho análogo ao escravo em uma carvoaria em um bairro de Salvador (BA), sem registro de contrato, trabalhando em condições insalubres e com jornada exaustiva.
Mas como é possível na era digital, da Inteligência Artificial, Big Data e Internet das Coisas ainda se conviver com essa realidade degradante? É a essa pergunta que o livro “Escravidão e dependência: opressões e superexploração da força de trabalho brasileira”, editado pela Lutas Anticapital, de autoria da professora Marcela Soares, do Departamento de Serviço Social de Niterói e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (UFF), procura responder.
“O resgate dos trabalhadores baianos deu visibilidade a um tema antigo”, afirma Marcela, que participa como pesquisadora colaboradora do grupo de pesquisa sobre trabalho escravo contemporâneo (GPTEC). O grupo se dedica ao tema há 20 anos, época em que ela era orientanda do Padre Ricardo Rezende Figueira, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um defensor das vítimas de conflitos fundiários e um dos precursores e principais investigadores do trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
O livro, dividido em quatro capítulos, é resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, supervisionada pelo professor Ricardo Antunes, da Unicamp, teórico e expoente da sociologia do trabalho. O eixo de ligação entre os capítulos aborda as expropriações fundantes do capitalismo e suas particularidades no capitalismo dependente, que resultaram numa precariedade estruturante do trabalho, na superexploração da força de trabalho e em “aspectos desprezíveis da nossa sociedade, baseados na forte influência das políticas eugenistas”, sublinha Marcela. Iniciada em 2017, a pesquisa abrangeu o Brasil e o México, devido às semelhanças entre os dois países, em especial durante os governos de Lázaro Cárdenas (1934-1940) e Getúlio Vargas (1934-1945) e porque o México poucos anos após realizar uma contrarreforma trabalhista tornou-se o país das Américas com maior número de escravizados.
A pesquisadora dedica a obra em um conto para a sua família, “que em suas histórias expressam a vivência das classes trabalhadoras brasileiras, em suas desigualdades regionais, na forma particular do sofrimento da opressão-exploração na violação do seu fundo de consumo e vida”. Migrante nordestino, filho de indígenas, seu avô trabalhava na construção civil e acabou por desenvolver a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), decorrente da exposição a substâncias químicas durante a jornada de trabalho diária, que muitas vezes continuava noite adentro quando ele precisava dormir na obra.
No trabalho análogo ao escravo, as condições de trabalho são degradantes: alojamentos improvisados, alimentação precária e péssimas condições de higiene |
Dados do Ministério Público do Trabalho revelam que, de 2003 até 2020, 70% dos resgatados trabalhavam no setor agropecuário. De acordo com a pesquisa, entre 2017, ano da última “reforma” trabalhista, até 2022, em todo país foram 46 trabalhadoras domésticas resgatadas, a maioria era negra, que experimentaram jornadas exaustivas, condições degradantes e tiveram seus salários retidos. Em 2019, foram 1.054 pessoas resgatadas da escravidão contemporânea e o setor agropecuário representou 62% dos casos, com destaque para a produção de carvão vegetal, cultivo de café e milho e criação de bovinos de corte. Nas áreas urbanas, quase 38% dos resgatados trabalhavam em confecções de roupas, na construção civil, nos serviços domésticos e ambulantes. Já nos anos de 2020 e 2021, revela o estudo, apesar da intensificação da fiscalização do trabalho, que passou a ser considerada atividade essencial, 1.937 pessoas foram resgatadas, o maior número anual desde 2013. Desse total, 89% estavam no trabalho agropecuário, em especial na cafeicultura, que também liderou o número de crianças e adolescentes escravizados. Alho, carvão vegetal, preparação de terreno, cana-de-açúcar e a criação de bovinos para corte vieram na sequência. Em 2022, houve um aumento de 300% no número de resgates em relação a 2017. Foram 2.575 trabalhadores resgatados, dos quais 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 58% eram nordestinas, 83% se autodeclararam como negras (pretas e pardas). O agronegócio continuou liderando os resgates, com 87% do total, em especial nas lavouras de cana-de-açúcar, onde 362 pessoas foram resgatadas. Extração de madeira, produção de carvão vegetal, cultivo de alho, café, maçã, soja, criação de bovinos de corte, extração e britamento de pedras e construção civil também foram incluídos nessa lista.
O livro também analisa as consequências da pandemia da Covid-19 para os trabalhadores e trabalhadoras. Uma das constatações é que o trabalho remoto, o home office, as entregas para os aplicativos aprofundaram a despadronização da jornada de trabalho – que passou a consumir ainda mais o tempo de vida das pessoas – e na supressão de direitos.
A condição de migrante nordestino e negro é a marca da escravidão contemporânea no Brasil, presente em diversos estados do País. Segundo a autora, isso pode ser explicado pelo histórico escravocrata do País e pela ausência de políticas de reparação histórica mais estruturais, a exemplo da reforma agrária. De acordo com Marcela, uma das práticas comuns da escravidão contemporânea é consequência da “terceirização irrestrita”, instituída em 2017, que beneficiou apenas os patrões. Como ocorreu no caso das vinícolas, o trabalho terceirizado estimula a precarização do trabalho, cujo extremo é a prática de servidão por dívida, quando parte ou totalidade do salário é retida pelo patrão a fim de saldar “dívidas” com transporte, alojamento, alimentação, etc., em jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho. “O debate da escravidão contemporânea é cada vez mais necessário, tendo em vista as consequências da suposta modernização das leis trabalhistas, que suprimiram direitos e agravam a precariedade laboral”, explica Marcela
A obra, lançada em 2022, contou com recursos do edital de Apoio Emergencial aos Programas de Pós-graduação da FAPERJ. Em seu primeiro capítulo, a obra traça um breve histórico do combate à escravidão contemporânea, relaciona algumas de suas expressões no País e suas tipificações, detalha o conceito de servidão por dívida, as condições degradantes de trabalho e as jornadas exaustivas, assim como o trabalho forçado e sem alternativas, discute as desigualdades regionais e os retrocessos das legislações trabalhistas. O capítulo também destaca a superexploração da força de trabalho, uma das categorias fundantes do capitalismo dependente, que atinge sua expressão mais evidente na escravidão contemporânea.
Superar o capitalismo
No capítulo 2, a autora discorre desde a escravidão à superexploração como componentes histórico-estruturais da força de trabalho, as particularidades latino-americanas do processo de mercantilização do trabalho no Brasil, o capitalismo dependente brasileiro gerando precariedade e superexploração da força de trabalho, articulado às opressões étnico-raciais e de gênero. Ao final, conclui que da mesma forma que a dependência, o atraso e o subdesenvolvimento históricos tanto não são anomalias do desenvolvimento como não podem ser superados dentro dos limites do capitalismo. A conclusão é que para a escravidão contemporânea ser erradicada no País é preciso superar o próprio capitalismo
No terceiro capítulo, a autora fala sobre a persistência de formas contemporâneas de escravização no Brasil, aborda a contrarrevolução e as contrarreformas trabalhistas, a expansão, pulverização e controle total e seus impactos nas condições de trabalho, diferencia o trabalho escravizado contemporâneo e as condições estruturais da exploração da força de trabalho no Brasil, a superexploração da força de trabalho e escravidão contemporânea no Brasil, as novas e velhas modalidades de trabalho: a plataformização do trabalho.
Por fim, o quarto e último capítulo discute a dignidade laboral diante da realidade da precarização do trabalho e da média salarial de R$ 2.500 contra os R$ 6 mil preconizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e faz uma crítica ao conceito de “trabalho decente”, instituído pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), que também estimulam o empreendedorismo e o autoemprego. A autora identifica essas alternativas ao desemprego como uma mistificação da precarização, que impedem o acesso das classes trabalhadoras brasileiras à dignidade constitucional, com uma remuneração compatível para a sua reprodução social, que não comprometa seus anos futuros de vida. Para baixar o livro gratuitamente em PDF, clique aqui.