O retorno das atividades do Congresso em 2021 e a luta contra a reforma administrativa

Por Vladimir Nepomuceno

Em fevereiro o Congresso retoma suas atividades para o início da sessão legislativa 2021, que é o período anual de atividades do Congresso Nacional. Com a retomada das atividades e a definição de quem comporá as direções da Câmara e do Senado para os próximos dois anos, deve ser retomada a pauta das chamadas reformas (des)estruturantes propostas pelos neoliberais.

Inicialmente deverá ser dado encaminhamento à PEC 186/2019, chamada pelos seus defensores de “PEC Emergencial”. Essa PEC, se aprovada como querem o governo, o sistema financeiro e setores da elite empresarial brasileira, além de seus representantes no parlamento, aprofundará drasticamente a crise social em que já se encontra o país e que deve se agudizar ainda no primeiro semestre sem a garantia da extensão do auxílio emergencial, o aumento do desemprego, a não ampliação do Bolsa Família e a segunda onda da pandemia, que lota hospitais e cemitérios, enquanto governantes fazem da vacina uma simples arma de disputa política.

Obviamente que a PEC 186/2019 só deverá ir a voto após a revisão pelo senador Marcio Bittar (MDB/AC) do seu relatório, atendendo a grita geral dos seus mandantes do mercado financeiro, dos grandes empresários e de outras lideranças neoliberais, reduzindo despesas na área social e com servidores, enquanto aumenta a remessa de dinheiro para o sistema financeiro através dos encargos da dívida pública.

Tão logo a área econômica do governo e seus aliados resolvam a pendenga da PEC186/19 deverá ser encaminhada mais abertamente a chamada reforma administrativa, que como disse o Ministério da Economia, é encabeçada pela PEC 32/2020, seguida de uma segunda e terceira fases, compostas por uma série de projetos de lei complementar e ordinária, além de atos infralegais, como decretos e portarias.

É bom termos em mente que nem todas as ações que compõem o projeto geral de reforma administrativa estão em uma das três fases, nem dependem da aprovação da PEC. Muitas proposições podem ser encaminhadas paralelamente à tramitação da proposta de emenda à Constituição. Algumas medidas infralegais, que não dependem de alteração na atual legislação, já estão sendo encaminhadas, como é o caso das atuais normas, implementadas em 2020, que praticamente inviabilizam a realização de concursos públicos.

Por falar na apresentação da PEC pelo Ministério da Economia, segundo a equipe daquele ministério, a segunda etapa seria constituída de projetos de lei complementar e ordinária, tratando principalmente dos temas:

– Gestão de pessoas, onde seriam encaminhadas proposições sobre:

Avaliação de desempenho, com um projeto de lei complementar, com diretrizes para as três esferas e outro projeto de lei ordinária, específico para servidores federais;

Consolidação de cargos e funções, através de um projeto de lei ordinária, com foco nos servidores do Executivo federal;

Diretrizes de carreiras, também um projeto de lei ordinária, também voltado à área federal e, por fim,

Ajustes no Estatuto do servidor, o Regime Jurídico Único.

–  Organizacional, sendo encaminhadas proposições tratando de:

Modernização (?) de formas de trabalho – projeto de lei ordinária;

Arranjos institucionais a partir do Decreto-Lei 200 – projeto de lei ordinária.

– Para o que foi definido com área estrutural, seria encaminhado um projeto de lei visando a “atualização” do Decreto-Lei 200, de 1967, principalmente no que se refere à administração pública indireta, sociedades de economia mista e empresas públicas e a relação entre as diversas instâncias.

Posteriormente à apresentação dos projetos da segunda fase, mas não necessariamente apenas depois de concluída a tramitação dos projetos dessa fase, será encaminhada a terceira fase, compostas de projetos chamados estruturantes. Nessa fase deverão ser apresentados projetos de lei completar, definindo diretrizes para os três Poderes e as três esferas de governo, tratando de:

– “Novo Serviço Público”, com a implantação definitiva da nova proposta do que seria, na visão do atual governo, a administração pública brasileira;

– Governança remuneratória, muito provavelmente trazendo a proposta do Banco Mundial de um nova estrutura remuneratória, com remuneração variada vinculada à avaliação de desempenho;

– Direitos e deveres no novo serviço público.

A partir da discussão sobre direitos e deveres, muito provavelmente, deverá ser encaminhado o novo código de ética Profissional do Servidor Público Civil, em substituição ao constante do Decreto nº 1.171, de 1994, que já foi chamado de ultrapassado pelo atual governo.

Também está em discussão a edição de uma nova lei de greve, específica para o serviço público. Cabe lembrar que, pela inexistência de regulamentação, o Supremo Tribunal Federal vem orientando a administração pública a utilização da Lei nº 7.783/89, lei de greve do setor privado, resultado da Medida Provisória nº 59/89, editada pelo então presidente José Sarney, no calor do massacre promovido pelo Exército e pela PM do Rio de Janeiro, durante a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, em novembro de 1988. O massacre deixou um saldo de três mortos e mais de cem feridos.

O movimento naquele momento era por melhores condições salariais, jornada de 40 horas semanais, readmissão dos demitidos no movimento do ano anterior, fim da perseguição à atividade sindical, entre outras reivindicações. Na edição da medida provisória, Sarney, como já havia feito de outras vezes, utilizou de cadeia nacional de rádio e TV para anunciar a medida, que objetivava “‘garantir a paz pública’, ameaçada pelo crescimento dos movimentos grevistas”, como noticiou o jornal O Globo em 28 de abril daquele ano. Óbvio que o resultado foi uma norma repressiva e que deverá servir de base para o tratamento aos movimentos reivindicatórios de servidores públicos. Que as entidades sindicais estejam alertas.

Ainda sobre o tratamento a ser dado ao tema greve no serviço público, a PEC 32/20 prevê a criação do “novo” formato de trabalhador temporário, o chamado “vínculo por prazo determinado”. Se aprovado como proposto, será permitido aos gestores que os contratem para substituir servidores em greve, como consta do artigo 39-A, parágrafo 2º, inciso I (“I – necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço”). Isso, independente da função, pois a PEC é genérica, além de que a definição do que seriam atividades essenciais também depende de regulamentação.

Projetos em fase final de elaboração

Quero me ater a partir daqui a três propostas de projetos de lei que já se encontram na Casa Civil da Presidência da República, o que significa que já passaram pela área de mérito no Ministério da Economia e pela AGU, cabendo ao órgão onde se encontram as propostas fazer a conclusão das proposições, com o apoio dos órgãos anteriores, para encaminhamento ao Congresso. Nesses projetos, além de proposições que deverão caminhar em paralelo à PEC 32/2020, há também algumas questões que, mesmo dependendo da aprovação da PEC, já estão em elaboração para que, tão logo aconteça a promulgação da nova emenda constitucional, possam ser protocoladas no Congresso Nacional, ganhando aceleração na implementação da nova política para a administração pública brasileira.

O primeiro projeto de lei trata da avaliação de desempenho

Essa matéria, dentro do que se propõe não depende da alteração do artigo 41 da Constituição incluída na PEC 32/2020, mas deverá ser o parâmetro para os três Poderes e as três esferas de governo.

Pela proposta a avaliação de desempenho passa a ser requisito para aquisição de estabilidade tanto para os atuais servidores que ainda não completaram o estágio probatório, quanto para os titulares dos futuros cargos típicos de Estado.

A Avaliação será permanente e periódica, como hipótese de perda do cargo, vínculo ou emprego público.

Um maior detalhamento será tratado em legislação ordinária de cada ente federativo, a partir da alteração do artigo 41, § 4º da CF.

Algumas questões ainda em discussão sobre avaliação de desempenho:

Para a perda do cargo, vínculo ou emprego público, ainda não está decidido se o desligamento poderia ser feito a partir de um único processo, com base nas avaliações periódicas, garantindo oportunidade de defesa ao servidor ou empregado.

A outra opção seria um processo específico tratando do desligamento por insuficiência de desempenho. Nesse caso, seria necessário ter o cuidado em distinguir insuficiência de desempenho das infrações disciplinares parecidas com desempenho (desídia ou inassiduidade habitual, por exemplo). Segundo alguns que participam do debate, no caso de um processo específico precisaria haver uma avaliação objetiva, separada de questões subjetivas para tratamento diferenciado, como desídia ou inassiduidade habitual, já citadas. Até o fim do ano passado ainda estava por ser decidido. Mais uma vez os servidores precisam estar atentos.

O segundo projeto trata de teletrabalho ou trabalho remoto.

A questão do teletrabalho independe da PEC 32/2020. Já havia o interesse do governo em utilizar o teletrabalho a partir da digitalização do máximo possível de serviços. A proposta ganha corpo a partir do distanciamento social necessário durante a pandemia. O que preocupa é que na proposta a ser incluída em projeto de lei, o governo mistura teletrabalho com trabalho remoto, além de deixar claro o oportunismo em utilizar essa forma de trabalho muito mais para buscar “redução de gastos” e de direitos dos servidores, mais o “aumento de produtividade”.

Alguns pontos apresentados sobre a proposta de projeto que merecem destaque:

– “O teletrabalho passa a ser procedimento geral e permanente, a critério de cada órgão ou entidade, não cabendo ao servidor optar, como se fosse um direito”.

– “Serão preservados serviços essenciais de atendimento ao público”.

Algo contraditório, por exemplo, com o que está sendo feito com o INSS, que tem a maioria de seus usuários pessoas que necessitam de atendimento presencial, enquanto estão sendo fechadas unidades de atendimento em todo o país.

– “Para que o órgão decida autorizar que a totalidade ou parte da equipe exerça suas funções em teletrabalho, é necessária a definição de critérios objetivos de aferição, verificação, acompanhamento das atividades, produtividade e resultados. Também é preciso haver compatibilidade da atividade com os limites pré estabelecidos de horário e de jornada de trabalho dos servidores ou cargos. Isso seria possível em aproximadamente 99,9% das atividades burocrático-administrativas”.

Perguntas óbvias:

– Se o teletrabalho é “a critério de cada órgão ou entidade”, o que significaria “autorizar”?

– Baseado em que levantamento técnico, estudo ou pesquisa, que até o momento não foi apresentado, os autores do projeto avaliam que a implantação do teletrabalho “seria possível em aproximadamente 99,9% das atividades burocrático-administrativas”?

– “Está prevista a criação de “unidades virtuais”, onde os servidores em teletrabalho seriam lotados”.

Isso significa que os servidores que forem postos em teletrabalho terão lotação específica, diferente de outros servidores, ainda que a equipe que exerça uma determinada atividade esteja apenas parcialmente em teletrabalho.

Alguns desdobramentos da implantação do teletrabalho identificados pelo governo, ainda não elaborados:

– “Será necessário que o órgão regulamente o eventual comparecimento presencial, por exemplo, para reuniões”.

Como veremos abaixo, essa regulamentação deverá se limitar a pouco mais que controle de presença.

– “Exige regra especial, diferenciada, sobre remoção, uma vez que, se o trabalho remoto for compatível com as atribuições do cargo, não haverá necessidade de remoção.”

                Como tratar a remoção em atividades em que ela é considerada desnecessária?

“O mesmo se daria com relação a despesas com ajuda de custo, diárias e passagens, além de horário extraordinário, que não seriam aplicáveis aos servidores remotos”.

“Se o servidor residir fisicamente em localidade distinta da sede do órgão, seja no país ou no exterior, para fins de ajuda de custo com diária se passagens, será considerado como domiciliado no município sede do órgão. Dessa forma, não terá direito a nenhum tipo de ajuda de custo, diária ou passagem para atividade na sede do órgão”.

Isso significa que, ainda que convocado para estar presente na sede do órgão por decisão da administração, independentemente da localização e distância, as despesas com deslocamento/passagens, diárias (alimentação fora de casa e hospedagem) serão de total e exclusiva responsabilidade do servidor. Exatamente o oposto do que está sendo feito em todos os setores, privados ou públicos na grande maioria dos países e no setor privado brasileiro. Um total desestímulo a que bons profissionais se interessem pelo cargo/emprego.

“Para fins de licenças ou afastamento, quando a atividade remota for compatível com as atribuições do cargo, assim como com a finalidade da licença ou afastamento, por exemplo, em caso de curso ou capacitação, quando houver a disponibilidade na modalidade à distância, considerando desnecessária a concessão dessas verbas”.

Bem objetivamente, se o servidor necessitar de capacitação ou especialização justamente naquilo em que exerce as suas atividades, será forçado a fazer isso em modalidade remota e em horário diferente do expediente determinado pela administração do órgão, o que, em outras palavras, é não ter direito à licença para se aperfeiçoar na atividade, ainda que traga vantagens para o próprio órgão, nem direito ao custeio dessa capacitação.

Além dessas questões, apresentadas pelo próprio governo, o servidor em teletrabalho (por decisão unilateral da direção do órgão) será o único responsável pela instalação, manutenção e custeio de equipamentos, instalações e condições de acesso à telefonia e internet, entre outras despesas.

O terceiro projeto trata de nova modelagem da estrutura funcional de carreiras e de cargos em comissão, funções de confiança e dos novos cargos de liderança e assessoramento.

Em relação ao tema, cabe ressaltar que a alteração da estrutura funcional de carreiras e cargos não depende da aprovação da PEC 32/2020.

Esse projeto, ainda que seja de lei ordinária, tratando exclusivamente de servidores federais, deve servir de referência para as outras esferas de governo.

A proposta, a ser apresentada no PL em questão, atende uma das principais “sugestões” do Banco Mundial, divulgada exatamente igual ao apresentado pelo governo Temer, em 2017 e, da mesma forma, anunciada como de autoria do governo de plantão. Esse gesto, como tantos, confirma, mais uma vez, a total ausência de protagonismo e a total subserviência às políticas neoliberais do Banco Mundial para países em desenvolvimento.

Segundo a Casa Civil da Presidência da República, a proposta “permite simplificação e unificação da estrutura e da disciplina jurídica de diversas carreiras e dos cargos em comissão em geral, objetivando mobilidade dos membros de carreiras, bem como mobilidade na distribuição das diversas espécies de cargos em comissão existentes na administração pública federal”.

Dizem, ainda, os defensores da proposta que “o projeto de lei se destina às carreiras e cargos ‘transversais’, que têm características comuns de atendimento à universalidade da administração pública, independente da nomenclatura formal que o cargo ou carreira tenha e que estariam, em princípio, excluídas as carreiras dos órgãos federais de segurança pública, AGU e agências reguladoras”.

Assim como em 2017, o pretendido, diferente do dito por representantes do governo – a redução e a unificação de carreiras, planos e cargos com perfil mais administrativo, considerados de atividades transversais, não identificados como de atividades fins dos órgãos públicos – tem que ser lida junto com outros pontos da reforma administrativa.

Além de deslocar servidores de um órgão para outro, sempre de acordo com interesses da administração, nunca dos servidores, evitando a realização de concursos, ainda que possa passar a ideia de racionalização da força de trabalho, na verdade tem outros objetivos.  A proposta se encaixa perfeitamente na pretensa autorização dada pela PEC 32/2020 para o presidente da república extinguir cargos e fechar órgãos por decreto. Ao fechar um órgão, parte dos servidores podem ser deslocados para outro à sua revelia, postos em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço ou ainda demitidos por insuficiência de desempenho.

Outra questão não explicita, mas desde 2017 discutida intramuros, é que, por consequência da unificação das estruturas de carreira e cargos, haverá a unificação de tabelas remuneratórias. Por não ser possível reduzir as remunerações mais altas para equiparar às mais baixas, é possível que seja utilizado o congelamento do “excedente” da tabela com valores mais altos, transformando as diferenças em vantagem pessoal, as conhecidas VPNIs ou VPs, dependendo do ente federado.

A também que ser considerado é que, apesar de atribuições e nomenclaturas semelhantes, muitos cargos considerados transversais, na verdade guardam algumas especificidades inerentes aos órgãos onde é exercida a atividade, que devem ser consideradas. Outra questão simplesmente ignorada.

Ainda em relação à redução de carreiras, planos e cargos, em que se baseia a decisão de não incluir no primeiro momento as carreiras dos órgãos federais de segurança pública, AGU e agências reguladoras? Segurança de dados? Especificidades inerentes à atividade fim do órgão no exercício das atividades? Segurança pública ou nacional? Além de não justificar tal decisão, também não é apresentado (mais uma vez) estudo que justificasse a unificação dos demais, que não fosse a redução e a flexibilização da força de trabalho?

Por fim, um dos principais objetivos deste artigo é mais uma vez demonstrar a amplitude e a complexidade do que chamam de “reforma administrativa”, que não se encerra em uma PEC mais alguns projetos. A leitura necessária e vasta, complexa e tem que ser permanente.