Manuela D’Ávila: precisamos falar sobre gênero

Publicado 21/04/2017
Para a deputada estadual gaúcha Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), 35 anos, o movimento sindical não pode adiar o debate envolvendo questões de gênero. “Quem não perceber isso estará cada vez mais distante de suas bases. Não há como abstrair a dimensão de ser mulher na fábrica, no campo ou no escritório com as responsabilidades sociais que nossa cultura patriarcal ainda impõe às mulheres”, diz a parlamentar. Formada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, D’Ávila ingressou no movimento estudantil em 1999 e foi vice-presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 2003. No ano seguinte, elegeu-se a vereadora mais jovem de Porto Alegre.
Em 2006, ela foi eleita deputada federal e ganhou da mídia o título de “musa do Congresso”, em muitas reportagens que celebravam a beleza da parlamentar. “Isso me fortaleceu, fez com que eu trabalhasse ainda mais para desconstruir esses estereótipos”. D’Ávila se destaca na luta pela defesa dos direitos humanos e como ativista pela igualdade de gênero. Ela concedeu, por email, uma entrevista à revista Mulher de Classe:
Mulher de Classe: Muito difícil ser parlamentar num país predominantemente machista?
Manuela D’Ávila: Sim, é muito difícil. Sempre foi. E parece que crescem cada vez mais as dificuldades com essa onda conservadora.
MC: Você despontou no movimento estudantil, como vê as ocupações de escolas e as lideranças femininas nessas lutas?
MD: Essas ocupações, sobretudo as ocupações das escolas, têm ensinado a geração mais velha como é possível reinventar o movimento estudantil. É incrível que a maior parte delas é dirigida por jovens meninas, que enfrentam dificuldades muito grandes, inclusive nos seus núcleos familiares, que reproduzem o machismo na ocupação das escolas. Uma reinvenção de práticas do movimento estudantil.
MC: Apesar das políticas públicas de acolhimento das mulheres e de combate à violência, o Brasil é um dos países que mais estupra e assassina mulheres, como vê isso?
MD: Isso reflete muito da cultura do estupro na sociedade brasileira, da cultura de culpabilização das vítimas, de não falar sobre o assunto, de fazer reproduzir silêncios que na verdade são cúmplices da violência. O Brasil é um país machista, e dentro do machismo existe a idéia da posse da mulher, e da posse da mulher para a violência física e sexual são alguns passos.
MC: O golpe que derrubou a presidenta Dilma acirrou a violência?
MD: O golpe fragilizou todas as nossas instituições e, evidentemente, a violência aumentou com isso. A quem a gente deve algum grau de obediência se as instituições não são respeitadas?
Eu acredito que o golpe acirrou a violência contra a mulher. E mesmo antes disso, o processo de construção do golpe, que foi um processo absolutamente ceticista e misógino, também fez com que essa violência crescesse.
MC: Qual o papel da mídia?
MD: A maior parte da mídia é cúmplice dessa construção do discurso machista relacionado com a presidenta Dilma. Basta lembrar das capas das grandes revistas. Na realidade, em um país que tem uma mídia com um comportamento misógino contra a presidenta da República, o que podemos esperar do tratamento dado à mulher comum que trabalha em casa, que auxilia nos serviços da sociedade?
MC: Você postou em suas redes sociais uma foto amamentando sua filha. Foi atacada e sua resposta viralizou na internet. Como vê uma sociedade em que o ato de amamentar é agredido?
MD: Tudo aquilo que é considerado público é retirado das mulheres. Às mulheres cabem os atos privados, e amamentar deve ser mantido no ambiente privado, porque na mentalidade machista é assim.
MC: O que as mulheres precisam fazer para mudar essa cultura machista?
MD: Elas precisam ocupar o ambiente público. Acho que esse é o principal debate que devemos fazer. Seja o espaço de Poder ou sejam os espaços das cidades.
MC: Mais mulheres na política pode transformar essa realidade?
MD: A curto prazo, eu só acredito nas cotas. E que elas sejam pra valer. Com cotas do financiamento público para candidaturas de mulheres, porque as pessoas dizem que mulheres não votam em mulheres. As votações de mulheres para a Presidência da República comprovam que isso não é verdade. As mulheres votam sim em mulheres.
MC: Poucas têm sido eleitas. Por quê?
MD: O problema é que elas precisam conhecer essas candidaturas, portanto, é preciso que as mulheres apareçam na televisão e que tenham os mesmos instrumentos que os homens.
MC: Quando foi eleita pela primeira vez, a mídia te apresentou como a “musa do ongresso”. Como lidou com isso?
MD: Naquela ocasião, em 2006, uma década atrás, quando eu assumi, foi tudo muito difícil, chegar em Brasília tão jovem como eu cheguei, com 24 para 25 anos, sem ter nenhum parente político, sem ser filha, sem ser neta, sem ter nenhum padrinho político, sem ser casada com um político, eu era a única deputada com menos de 30 anos sem ter um sobrenome importante, e aí eles ainda colocam esse rótulo. Isso me fortaleceu, fez com que eu trabalhasse ainda mais para desconstruir esses estereótipos.
MC: Como mãe de uma menina, o que espera do futuro na questão de gênero?
MD: Ser mãe de outra mulher é algo bastante desafiador, porque a gente vê e passa o tempo inteiro em um estado de vigilância com relação à perpetuação desses padrões, dos padrões estéticos, dos padrões de felicidade, dos padrões de divisão de brinquedos que refletem a divisão social dos trabalhos.
MC: Ser mãe de menina aumenta a responsabilidade para ajudar a romper as barreiras da opressão machista?
MD: A gente deve ser vigilante com a gente mesmo, mas também com os outros, desde as divisões das cores, das divisões de brinquedos, até a ideia de que menina não brinca com carrinho, e depois ela não pode dirigir, porque ela nunca brincou com aquilo, aquilo não é familiar. Então, é algo que exige muito cuidado porque o movimento da sociedade é muito forte para colocar a mulher no lugar que acreditam que seja o lugar da mulher.
MC: Acredita que o movimento sindical e os partidos políticos agem para combater o patriarcado?
MD: Eu acho que o movimento sindical e os movimentos sociais em geral, cada vez mais percebem a relevância da pauta de gênero para a conquista dos trabalhadores, porque não há como abstrair a dimensão de ser mulher na fábrica, no campo, no escritório, com a desigualdade que isso impõe, seja pela não contratação na idade ideal, pela demissão pós maternidade ou pelas responsabilidades sociais que nossa cultura patriarcal ainda impõe às mulheres. Então quem tem que levar na creche, quem tem que levar no posto de saúde é a mulher, isso faz com que ela falte mais dias ao trabalho.
Tudo isso junto é uma pauta urgente do movimento sindical, e aqueles que não a pautarem estarão cada vez mais distantes das suas bases.
MC: O que fazer para acabar com a ideologia patriarcal?
MD: Acho que nós temos que começar tudo junto ao mesmo tempo, desde legislações mais punitivas, até um amplo debate sobre gênero nas nossas escolas e vigilância com conteúdo televisivo e midiático. São muitas as ações necessárias para que a gente tenha um país com uma outra cultura com relação às mulheres.
Portal CTB – Marcos Aurélio Ruy. Foto: Reprodução do Facebook de Manuela D’Ávila
Entrevista publicada originalmente na revista Mulher de Classe número 6, de abril de 2017.