A descarada e indecente urbanização do apartheid no litoral de SP

Elite com casa em Maresias se une para impedir construção de conjunto habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida.

Folha de S.Paulo publicou, no início de fevereiro, interessante reportagem intitulada “Oposição a conjunto habitacional em Maresias une moradores e chefe da Secom do governo Bolsonaro”. Nela soube-se que um conjunto habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) – um dos raros que ainda sobrevieram – está para ser construído na chique e elitista praia do Litoral Norte de São Paulo. Soube-se também que o fato gerou imediata reação dos proprietários do local, entre eles o chefe da Secretaria de Comunicação da presidência. Porém, nem ele, nem os demais proprietários representados pelo presidente da associação dos “moradores” locais admitem que se construa um conjunto habitacional para gente pobre na sua bela praia. As justificativas são muitas: dizem que há outras prioridades, que isso atrairá muita gente para o local, que o local não suporta mais crescer, que não houve estudo de impacto ambiental, que não há capacidade de saneamento para mais esse empreendimento, e assim por diante. Face à revolta dos “moradores”, o alto funcionário de Bolsonaro diz estar sensibilizado já que ele também tem casa lá, por isso acompanhará de perto a questão.

Talvez um dos aspectos que mais impressionem no atual momento político brasileiro não seja nem a continuidade das perversidades da nossa sociedade, mas o fato de que agora pode-se defendê-las sem o menor constrangimento. Há uma carta branca geral para a imbecilidade. O sujeito promete em mídia nacional que vai usar de carteirada institucional para “acompanhar” de perto um processo que impedirá que pessoas mais pobres possam ter acesso à moradia, ainda mais se estas “atrapalharem” sua casa de veraneio, e tudo parece normal. Pelo menos há uma vantagem nisso: temos uma oportunidade de uma verdadeira aula sobre como funciona a perversa urbanização do país das elites proprietárias, e mais especificamente dos nossos litorais. Pois se o caso é em Maresias, ele se aplica a toda nossa costa, com certeza.

A urbanização brasileira das elites proprietárias

Durante décadas, as elites paulistanas ocuparam as praias lindíssimas do Litoral Norte do Estado. Tal ocupação foi, do ponto de vista urbanístico, “selvagem”: terras obtidas aos poucos por senhores paulistanos ricos que as “compravam” informalmente dos caiçaras com contratos precários e as loteavam para venda, ganhando fortunas com isso. Com o tempo, o Estado – no sentido amplo, envolvendo todos os poderes –, que neste país é instrumento dos interesses dessas elites, deu um jeito de tornar tudo isso mais ou menos legal. Nem sempre funciona assim, é verdade: em Florianópolis, por exemplo, o Instituto de Planejamento se depara com o fato de que uma parte significativa das residências da ilha, quase todas de classe média e alta, são irregulares. Joaquim Costa Neto, em seu doutorado orientado por Ermínia Maricato, na FAU-USP, mostrou que, ao longo de décadas, uma enorme parte das terras devolutas (do Estado) na Serra do Mar foram sendo sorrateiramente repassadas a proprietários privados.

No litoral paulista, a classe média-alta e alta paulistana foi construindo, da década de 1980 para cá, suas mansões. Inicialmente sequer havia estrada asfaltada, passava-se pela praia mesmo e as mansões, muitas vezes, se construíam nas encostas verdes de Mata Atlântica nativa, mas ninguém ligava muito para isso. Se em algumas praias venceu o padrão vertical de alta densidade, com prédios à beira-mar como no Guarujá, na maioria das praias foi-se consolidando uma ocupação horizontal de casas de veraneio. No Litoral Sul, um pouco mais modesto economicamente, casinhas menores com ares de subúrbio; no Litoral Norte, o “filé mignon”, mansões. Há até “praias dos arquitetos” no Guarujá e em Ubatuba, com marcantes obras assinadas por arquitetos famosos.

Essa ocupação foi sendo feita, evidentemente, sem políticas públicas adequadas porque no Brasil, na nossa urbanização muito peculiar, o regramento urbanístico não é necessário quando se trata da camada de cima. As elites podem ocupar como quiserem, pois o que vale é a lógica do vale-tudo patrimonialista: manda quem pode… Por isso, o que era óbvio aconteceu: hoje há centenas de milhares de mansões, sem captação nem tratamento de esgoto, resolvendo o saneamento por meio de fossas sépticas, em uma região cujo lençol freático está à flor da terra, e do mar. Isso atraiu também toda uma cadeia econômica, gente menos abastada, que viu com honestidade e disposição oportunidades de empregos destinados a servir ao veraneio dos paulistanos de alta renda: comércio, mas também empregos de caseiros, seguranças, marinheiros, faxineiros, e assim por diante. Mas, é claro, ninguém, e muito menos o poder público, “pensou” nessa gente. A lógica urbana brasileira é a de deixar os ricos ocuparem e o resto que se vire. Como já disse o Chico de Oliveira, uma forma expedita de manter baixos os custos de reprodução da força-de-trabalho.

Os que se saíram melhor, geralmente comerciantes, ocuparam as raras casas nas praias de uso permanente ou, mais frequente, densificaram os pequenos centros urbanos de São Sebastião, Ubatuba, Bertioga, etc. Mas a grande maioria dos trabalhadores, nos empregos menos remunerados, tiveram que se virar. Nas chamadas “comunidades” para além da estrada, no sertão das praias, subindo o morro, em habitações precárias. Com a saturação dos terrenos na faixa da orla, até mesmo os sertões foram sendo comprados para casas de veraneio, um mercado aquecido até hoje, quando os últimos terrenos de caiçaras à beira da serra são vendidos. O mercado imobiliário do litoral passou a bombar, com suas “oportunidades” e ações não-reguladas, sempre tão nefastas ao meio urbano e ao meio ambiente.

E assim caminha nossa urbanização

Francisco Comaru, professor da UFABC, mostrou em seu doutorado que com a chegada de grandes empreendimentos como o Riviera São Lourenço, em Bertioga, houve um aumento significativo da população atraída pelas oportunidades de empregos, mas que, sem ter onde morar, foi levada a construir seus assentamentos precários sempre do outro lado da estrada, nos morros. Caso interessante de projeto “urbanístico” premiado, pois propôs uma estação de tratamento de esgoto própria ao empreendimento, e uma variedade de tipologias de casas, desde mansões até apartamentos de vários tamanhos, a Riviera provocou, ao mesmo tempo, o surgimento na região de favelas para servi-la. Estas, é claro, precárias e sem esgoto tratado. Nunca uma prefeitura iria exigir, como seria normal em economias minimamente reguladas – o que acontece, por exemplo, na Espanha e em diversos países europeus –, que se fizesse ao menos um percentual de moradias destinadas a quem lá iria trabalhar dentro do empreendimento.

E assim caminhou a urbanização desse paraíso tropical. De uns anos para cá começou-se a ouvir cada vez mais nas conversas furtadas nos centrinhos comerciais chiques a afirmação de que a poluição das praias, cada vez mais frequente, era causada “pelo córrego contaminado pela comunidade ali de cima”. Interessante como nunca se aventa a ideia de que, talvez, essa comunidade, que só está lá para servir às casas de veraneio, seja só a ponta do iceberg de uma poluição sistêmica que vem sendo promovida há décadas por mansões sem saneamento que saturam o lençol freático. Mas o problema sempre é “a comunidade ali de cima”.

Por João Sette Whitaker Ferreira

Via Carta Capital