Por Flávia Costa
Depois de grandes desportistas propagarem com razão sua indignação em relação a proposta dada pelo chefe da unidade de terapia intensiva do hospital Cochin em Paris, Jean-Paul Mira, para fazer testagens em relação a possíveis vacinas contra o novo Coronavírus, onde disse: “Por que não realizar estudos na África, onde não há máscara, tratamento nem reanimação?” Reaparece no cenário a discussão sobre a bioética dos testes farmacológicos, que apesar dos códigos normativos é alvo de muita discussão sobre condutas por Organizações Sociais Humanitárias e seguimentos da Comunidade Cientificas do Mundo inteiro.
“Os experimentos científicos sempre fizeram parte de nossa história, com a utilização do homem, como objeto de estudo na busca pelas novas descobertas e novos conceitos científicos”, afirma Roberta Elzy S. Faria
É fato que as medicações encontradas nas prateleiras farmacêuticas com certeza já carregam em si testes em animais e humanos, nesta ordem. Antes que um medicamento seja colocado no mercado, ele é testado in vitro e em animais de pequeno porte, como ratos, coelhos ou chimpanzés. Em seguida os testes clínicos são realizados em seres humanos, seguindo protocolos de segurança restritos para evitar acidentes e, na medida do possível, controlar os efeitos colaterais. Os experimentos emergem formatos de acesso e ascensão, alguns buscam dinheiro, outros uma cura e há quem só deseje o progresso para a humanidade.
Percebe-se ao aprofundar as pesquisas, que o formato adotado em muitos momentos da história remota e atual, passa pela agressividade de obtenção lucros e sucesso da corrida mercadológica, alicerçada no sistema capitalista que tem como um dos seus instrumentos principais a opressão sobre classe, gênero e raça, por consequência, maior exploração sobre vítimas da pobreza e muitos reféns do processo escravocrata onde o racismo e a ausência do estado, sucumbem necessidades imediatas direitos básicos reais como saúde, alimentação, educação, trabalho, enfim, o que reforça parcerias onde nem sempre a condução dos testes são de formas éticas.
As experimentações científicas no decorrer da história do mundo são carregadas por grandes feitos e grandes abusos de lesa humanidade, sustentadas pelo desejo de sucesso de grandes estudos científicos.
Exemplos históricos: Karl Brand, cientista que se debruçava sobre o estudo do organismo humano, obrigava seus “pacientes” a ingerir venenos e injetava gasolina intravenosa.
Josefe Menguele, mais conhecido como “Anjo da Morte” buscava em seus estudos o melhoramento genético da raça ariana. Condenando vidas Judaicas, especialmente crianças, sobretudo gêmeos e anões. Desde o teste da possibilidade de alteração da cor dos olhos onde injetava corantes operando em crianças sem anestesia e infectava gêmeos com tuberculose e tifo. Tal crueldade foi julgada como crime de guerra do período nazista, em Nuremberg. Em 1947 no mesmo estado, é criado o Código de Nuremberg, um primeiro movimento normativo com regras estabelecidas para pesquisas mais justas.
Outro episódio histórico, este reforçado pelo Racismo Institucional e Estrutural, é a pesquisa do “Estudo Tuskegee de Sífilis Não Tratada no Homem Negro”, cujo o fim era diagnosticar a evolução do mal no organismo humano no Condado de Malcon, estado do Alabama nos EUA, foram pesquisados 400 negros portadores de SÍFILIS, o estudo teve a duração de 4 décadas terminando em 1972 e foi denunciado pela própria comunidade científica. Os humanos testados não tinham o conhecimento de que eram cobaias.
Vale registrar que a penicilina era o tratamento básico utilizado para a cura da Sífilis desde 1932. Somente em 1997, na época o presidente Bill Clinton pede desculpas a respectiva comunidade do Alabama. Outros casos tornaram-se conhecidos como A droga da verdade 1953 – EUA e o Cereal Radioativo 1944/1974 – EUA. Cerca de 80 abusos deste tipo, só nos Estados Unidos, foram documentados pelo anestesista Henry Beecher, professor da Universidade Harvard, morto em 1976. Beecher mostra na divulgação do seu estudo 22 arquivos que comprovam que a desumanidade não era somente uma característica xenofóbica nazista, mas também continha o racismo americano.
Em 1964, o Código de Nuremberg desdobra-se gerando a Declaração de Helsinque, que lista os direitos do sujeito de pesquisa. A declaração, assinada numa Assembleia Médica Mundial, até hoje orienta médicos nos cinco continentes.
Em 1996 Pfizer, Multinacional conhecida do mundo farmacológico, é processada criminalmente pelo Governo da Nigéria, por fazer testes de uma nova droga a Trovan, na epidemia de meningite na cidade nigeriana de Kano, onde testaram 200 crianças com a doença. Segunda a defesa africana, a empresa não informou aos pais destas crianças que se tratava de testes científicos medicamentosos, o efeito era morte, cegueira, surdez e paralisa.
O tema dos testes científicos sobre humanos, os abusos em especial na população negra africana, é fortemente evidenciado no filme O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener), EUA, 2005, sob direção do brasileiro Fernando Meirelles, onde foi ganhador de 10 premiações entre elas o Oscar, mostrava as favelas do Quênia onde a trama coloca a discussão sobre a máfia envolvida da indústria farmacêutica, e suas peculiaridades.
Tratamento desigual para africanos e asiáticos de países pobres
Na África, as possíveis regulamentações médicas e farmacêuticas datam da época colonial são obsoletas e inadequadas. Os laboratórios concentram-se no continente pois o custo em relação aos países desenvolvidos é até 5 vezes mais barato, além do afrouxamento dos códigos de ética, para a testagem.
Menciona Jean-Philippe Chippaux, diretor de pesquisa do Institut de Recherche pour le Développement, em artigo para o jornal francês Le Monde Diplomatique, que as condições epidêmicas do continente de elevadas doenças, sobretudo as infecciosas, tratamentos reiterados e intensivos é terreno fértil para a exploração que também se assegura, segundo no perfil dócil dos pacientes, na miséria instituída pela pobreza e na crise sanitária.
Vale lembrar a vulnerabilidade impostas a africanos, levam a grandes mazelas de saúde pública, são inúmeros os doentes por tuberculose, malária, HIV, doenças hepáticas e desnutrição.
São reféns não só dos testes como cobaias humanas que em muitas vezes não são de total conhecimento deles onde pensam estar tomando remédios ou vacinas para sua cura, eles também são vítimas de um mercado farmacológico paralelo de remédios falsos, que faz pelo menos 100.000 mortos a cada ano na África, segundo a OMS.
Tudo isso compõe a relação do trágico desrespeito a dignidade humana com os civis Africanos e civis pobres da Asiáticos, que em dias atuais ainda, se faz constante e está dentro enraizada na super estrutura do Racismo Institucional. A resposta da superestrutura da dominação capitalista escravocrata, aliado a sensação da não criminalização, faz com que pessoas como o francês Jean Paul Mira e outros, não pestanejem para aventar usar sem critérios o corpo negro e pobre em seus experimentos, evidenciando, sem nenhum pudor, o seu racismo e a antiética. Liberdade, Fraternidade e Igualdade para poucos.
O mercado do voluntariado
No Brasil: Os ensaios clínicos são realizados apenas após a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) entidade reguladora, que adequa para os testes e garante a segurança e os direitos dos voluntários. Até 2012, eram proibidas as remunerações de participantes das pesquisas médicas. A partir de 2013 por resolução, houve a autorização de pagamento daqueles que permitem que substâncias ainda em estudo, sejam testadas em seu organismo. Os voluntários, devem ter entre 18 e 50 anos, são pagos entre R$ 400 e R$ 3 mil por teste e como mencionado está de acordo.
Na França: Voluntários humanos por imposição governamental podem o limite de € 4.500 por ano para evitar os abusos. O voluntário não pode participar de mais de 3 experiências anuais. O que leva a vária multinacionais e empresas farmacológicas, buscarem estratégias. Segundo a RFI (Radio Francesa de Notícias) “Índia ou China, mas também a América Latina e o leste europeu sempre fornecem “cobaias humanas” para as empresas farmacêuticas ocidentais, em um mercado estimado em € 1,5 bilhões por ano”.
Fontes de Pesquisa
Experimentação Científica com Seres Humanos: Limites Éticos e Jurídicos, Roberta Elzy Simiqueli de Faria; RFI – Radio francesa de notícias – http://www.rfi.fr/br/ciencias-; Artigo Revista Galileu e Superinteressante, Documento OMS – Organização Mundial de Saúde; Le Monde Diplomatique Artigo Jean-PhillipeChippau diretor de pesquisa do Institut de Recherche pour Le Développement.
Flávia Costa é pedagoga, consultora de Gênero e Raça, professora autônoma de gênero no Projeto PUC de Portas Abertas para Migrantes e Refugiados, é membro da direção nacional da União Brasileira de Mulheres e diretora estadual de Comunicação da União dos Negros pela Igualdade-SP.