A agricultura familiar precisa de apoio para abastecer o país com alimentos sem veneno

Por Marcos Aurélio Ruy

Desde que tomou posse há mais de um ano e meio, o presidente Jair Bolsonaro tem privilegiado os grandes proprietários de terra em detrimento da agricultura familiar. “Enfrentamos problemas de todos os tipos, que passam pelas dificuldades de acesso ao crédito, na comercialização, falta de assistência técnica, o avanço da monocultura pelo agronegócio frente às pequenas propriedades, grilagem de terra, e a terrível degradação ambiental, inclusive com a contaminação das águas, e o uso indiscriminado dos agrotóxicos”, afirma Rosmari Barbosa Malheiros, secretária de Meio Ambiente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

Em entrevista ela fala sobre o Plano Safra 2020/2021 divulgado recentemente pelo Ministério da Agricultura, sobre os problemas enfrentados pela agricultura familiar com as políticas recessivas desse desgoverno e a degradação ambiental causada pelas centenas de agrotóxicos liberados, a grilagem da terra, as queimadas e o desmatamento.

Lembrando também que a aprovação do Projeto de Lei (PL) 735/2020, pela Câmara dos Deputados na segunda-feira (20), mandou a bola para o Senado. “Muitos trabalhadores do campo estão enfrentando dificuldades para escoar a produção. Por isso, necessitam desse auxílio com urgência”, defende.

O PL pretende fornecer um sobre auxílio emergencial aos agricultores e empreendedores familiares, pescadores, extrativistas, silvicultores e aquicultores que não estejam contemplados pelo auxílio emergencial aprovado pelo Congresso a todas as pessoas que ficaram sem renda por causa do isolamento social devido à pandemia do coronavírus.

Pela proposta, os trabalhadores do campo que necessitarem do auxílio receberá cinco parcelas de R$ 600 e as mulheres responsáveis pela família receberão cinco parcelas de R$ 1.200.

Rosmari Malheiros, secretária de Meio Ambiente da CTB e da Contag

Leia a entrevista na íntegra:

Em meio à pandemia, o Ministério da Agricultura lançou o Plano Safra 2020/2021. Esse plano é bom para a agricultura familiar?

Rosmari Malheiros: O Plano Safra 2020/2021 com as propostas destinadas à agricultura familiar se mostra totalmente insatisfatório para as necessidades dos pequenos agricultores. Tanto a CTB, a Contag e demais organizações de trabalhadores(as) do campo e da cidade rechaçam esse plano porque foi lançado um único Plano Safra (agronegócio e da agricultura familiar), desconsiderando as especificidades da agricultura familiar.

Entendemos que não somos ou temos uma só agricultura no Brasil, e que é preciso valorizar quem realmente garante a soberania alimentar e familiar. Vale destacar que desde o governo Fernando Henrique Cardoso, o Plano Safra sempre foi anunciado de forma separada (agronegócio – agricultura familiar), e inclusive nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, tivemos o Ministério do Desenvolvimento Agrário (extinto por Michel Temer, em 2016) para tratar especificamente da agricultura familiar.       

Esperávamos mudanças significativas que impactassem nas taxas de juros, no montante de recursos destinados à agricultura familiar, em mais investimentos em assistência técnica. Um ponto relevante para a agricultura familiar e bastante esperado pelos agricultores/as sobre a questão da habitação rural, não atingiu o montante de recursos desejados pelas organizações do campo. O desgoverno federal anunciou somente R$ 500 milhões de crédito para financiar e reformar casas rurais, quando esperávamos o dobro ou triplo desse valor. A própria Contag propôs a destinação de R$ 2 bilhões para a habitação rural.

Com o plano do desgoverno, tivemos poucas mudanças ou avanços para a agricultura familiar, sendo que uma das poucas pautas atendidas refere-se ao fato de que o filho ou filha do(a) agricultor(a) familiar, que possua Declaração de Aptidão (DAP), poderá também solicitar financiamento para construção ou reforma de moradia na propriedade dos pais.

Então as trabalhadoras e trabalhadores do campo estão insatisfeitos com esse plano?

De um modo geral, a agricultura familiar sai insatisfeita com o Plano Safra anunciado. Precisamos de mais recursos para investimento e taxas de juros menores, para que os agricultores(as) familiares possam se reerguer diante das consequências da pandemia, uma vez que houve perda de produção e de renda, suspensão das feiras livres, da venda para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), entre outras.

Importante ressaltar que com a pandemia, os desafios da agricultura familiar só se agravaram, pois já é uma categoria historicamente desassistida pelo poder público. No Plano Safra 2020/2021 por exemplo, dos R$ 236,3 bilhões anunciados, R$ 179,4 bilhões foram destinados ao agronegócio, e apenas R$ 33 bilhões para a agricultura familiar.       

O desgoverno Bolsonaro ameaça a produção de alimentos no país com os cortes promovidos nos investimentos na agricultura familiar, que produz 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros?

As ações do desgoverno federal, por meio de seus ministérios e secretarias específicas não sinalizam com políticas, programas ou projetos que amparem a agricultura familiar, principalmente frente à questão da pandemia que assola o Brasil e o mundo, sendo que no campo, nas áreas de assentamentos e comunidades rurais, essa realidade é ainda mais preocupante, uma vez que, cotidianamente, sempre enfrentamos problemas de todos os tipos, que passam pelas dificuldades de acesso ao crédito, na comercialização, falta de assistência técnica, além do avanço da monocultura pelo agronegócio frente às pequenas propriedades, grilagem de terra, e a terrível degradação ambiental, inclusive com a contaminação das águas, e o uso indiscriminado dos agrotóxicos.

O auxílio emergencial em tramitação no Senado é necessário?

Muitos trabalhadores do campo estão enfrentando dificuldades para escoar a produção. Por isso, necessitam desse auxílio com urgência. Ainda mais porque no atual governo a falta de políticas viáveis para a produção pelos(as) agricultores(as) familiares acirraram as dificuldades.

Fica evidente o favorecimento e afrouxamento dos órgãos de fiscalização frente ao aumento das queimadas, do desmatamento das nossas florestas, rejeitos de minérios em nossos rios, tudo isso impactando violentamente nos espaços de vida e produção dos(as) agricultores(as) familiares.

Por isso, o movimento sindical defende outro projeto para o campo?

Nós, da CTB e da Contag, estamos atentos a todas essas questões, temos tentando quebrar essa cadeia de desmonte das políticas públicas, e da tentativa de retirada dos direitos que nós lutamos e conquistamos. Para isso unimos esforços a outros movimentos sociais e sindicais, às centrais sindicais, fortalecendo as lideranças de base nos estados e buscando algum apoio junto aos governos estaduais que são do campo democrático.  Mas não tem sido fácil romper esse avanço da direita conservadora sobre nossas conquistas, até porque o desgoverno agora sinaliza com benesses ao “Centrão”, praticamente comprando apoio no Congresso para aprovação das reformas impopulares, que muito nos atinge.

Bolsonaro privilegia o agronegócio em detrimento dos pequenos agricultores?

Visivelmente. Como exemplo podemos citar a questão das taxas de juros do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que ficaram entre 2,75% para o Mais Alimento e 4% ao ano para as demais linhas de crédito, bem acima do esperado pelas entidades representativas da agricultura familiar. Enquanto os juros para os grandes produtores diminuíram de 8% para 6% ao ano, para os/as agricultores/as passou de 3% para 2,75%, ou seja, redução de apenas 0,25%.

A própria flexibilização e desmonte dos órgãos de fiscalização, como citei acima, favorece os grandes grupos empresariais e as multinacionais, que avançam na exploração de minério, buscam privatizar nossas fontes de água potável, têm acesso a um volume de crédito em bilhões superiores aos nossos, avançam nos territórios, gerando conflitos fundiários, tudo isso contando com a “benevolência” do desgoverno e de parte do judiciário, visto que não são punidos. E mesmo com tantas infrações ao meio ambiente, são premiados com mais facilidade de acesso aos incentivos financeiros e aos programas governamentais.

A agricultura familiar emprega mais e produz alimentos saudáveis. O que esperar do futuro com a política atual para a agropecuária?

O agronegócio é mecanizado, trabalha com o mínimo de mão de obra, produz visando a exportação. A agricultura familiar é quem realmente garante a soberania e segurança alimentar do Brasil, com a produção de mais de 70% dos alimentos que chegam diariamente à mesa dos brasileiros e brasileiras. São as unidades familiares que empregam na cadeia produtiva, diversificam essa produção, e produzem um alimento mais saudável.

O último Censo Agropecuário, de 2017, aponta que a agricultura familiar emprega mais de 10 milhões de pessoas, o que representa 67% do total de pessoas ocupadas na agropecuária do país.

Quais os efeitos da liberação indiscriminada de mais  500 agrotóxicos na produção de alimentos e na vida dos trabalhadores do campo?

O desgoverno federal viabilizou a liberação indiscriminada de vários agrotóxicos, via Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), produtos letais, muitos deles antes aqui proibidos assim como em vários países. Foi sinalizado à Anvisa para que flexibilizasse a liberação de vários desses agrotóxicos, sendo liberados em torno de mais de 400 novos venenos só em 2019, o que traz consequências devastadoras à saúde humana e ao meio ambiente. Somando com este ano já ultrapassa a marca de 500 agrotóxicos liberados.

Há uma pressão muito grande por parte dos ruralistas e de outros grupos de grandes proprietários e de grandes grupos empresariais pela liberação desses produtos. Assim como a questão da pandemia, o debate sobre os agrotóxicos cai na polarização vida x economia. O agronegócio argumenta que o uso (de agrotóxico) é fundamental para a produtividade da agricultura brasileira, onde, dessa forma, mais uma vez as questões econômicas estão acima da vida e da saúde dos consumidores, dos(as) trabalhadores(as) do campo, dos(as) agricultores(as) familiares.

Do meu lugar de fala, faço parte da frente de luta (conjunta com movimentos sociais e ONGs) que apontam os danos à saúde da população devido ao consumo de alimentos contaminados por agrotóxicos, ou mesmo as consequências ao trabalhador(a) que aplica o veneno, bem como a contaminação dos alimentos que chegam à nossa mesa, destacando que, não há eliminação da contaminação sofrida pelos alimentos pulverizados por agrotóxicos, ainda que sejam bem lavados.

Os agrotóxicos causam muitos problemas à saúde?

São diversas as doenças causadas pelos agrotóxicos. Por exemplo, a gestão ou inalação de determinados tipos desses defensivos causam necrose nos rins, nas artérias no pulmão, às células do fígado, diversos tipos de cânceres, malformação de fetos, dermatites, sendo que muitas vezes as doenças só irão se manifestar ao longo do tempo, o que faz com que a maioria dos trabalhadores(as) não associem as consequências à saúde à contaminação, ao envenenamento que esses produtos nos causam. 

Enfim, a liberação cada vez maior de agrotóxicos pelo atual desgoverno coloca em risco não só a vida humana, como a biodiversidade de nossos ecossistemas.

O que fazer contra isso?

Nós defendemos uma agricultura que valorize a biodiversidade, que valoriza o meio ambiente, a saúde da população, os agricultores e agricultoras familiares. Acreditamos que é possível produzir sem agrotóxicos, com agroecológica, tratando cuidadosamente da transição da agricultura tradicional para agroecologia, e que leve em conta os processos de comercialização e consumo, sendo que, para que isso aconteça, é preciso termos acesso às políticas públicas de apoio à agricultura familiar.