Um pronunciamento temperado com ódio, mentiras e calúnias

O discurso de Jair Bolsonaro na abertura da assembleia da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (24), não surpreendeu nem fugiu à regra. Como era de se esperar, foi temperado com ódio, mentiras e infâmias. 

As mentiras

Numa referência aos governos Lula e Dilma (que foi deposta por um golpe de Estado em 2016, como admitiu recentemente o próprio Michel Temer), o líder da extrema direita brasileira afirmou que, quando chegou ao Palácio do Planalto, o “Brasil estava à beira do socialismo” e sob orientação do Foro de São Paulo, que caracterizou como uma “organização criminosa, criada por Fidel Castro, Lula e Chavez, para difundir e implementar o socialismo na América Latina”.

A verdade é que os governos de centro-esquerda liderados pelo PT nem de longe podem ser considerados anticapitalistas, jamais propuseram a implantação do socialismo, a socialização dos meios de produção (em contraposição à propriedade privada burguesa) ou algo do gênero. Além disto, propiciaram generosos lucros aos banqueiros e grandes empresários, inclusive estrangeiros.

É igualmente falsa a ideia de que o Foro de São Paulo, fundado em 1990 por partidos progressistas da América Latina de diferentes matizes ideológicos, prega ou pleiteia o socialismo. A organização luta pela democracia, a integração democrática e solidária das nações da região e a soberania, rejeitando as intervenções imperialistas dos EUA, que são recorrentes na história, e advogando o direito dos povos e nações à autodeterminação.

No Brasil, participam do grupo o PDT (Partido Democrático Trabalhista), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PCB (Partido Comunista Brasileiro), PPL (Partido Pátria Livre), PPS (Partido Popular Socialista), PSB (Partido Socialista Brasileiro) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Desses partidos, só o PCdoB e o PCB ostentam identidade comunista.  

Teoria da conspiração 

O rei dos Fake News reiterou que foi esfaqueado por um militante da esquerda. Trata-se de uma versão delirante e enganosa dos fatos. Peritos indicados pela Justiça Federal concluíram que Adélio Bispo, o homem que o esfaqueou na campanha eleitoral de 2018, é simplesmente um doente mental. Três laudos já foram feitos para apurar a possibilidade de problemas mentais e as conclusões não deixam margem a dúvidas.

Por esta razão, em 14 de junho deste ano o juiz federal Bruno Savino, de Juiz de Fora, decidiu considerar Adélio Bispo de Oliveira inimputável na ação penal referente à facada e converteu a prisão preventiva em internação provisória, mantendo Adélio na Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Campo Grande (MS). 

O doente mental, que voluntária ou involuntariamente acabou favorecendo a campanha do capitão reformado, permanecerá internado por tempo indeterminado, nos termos da sentença. A insistência de Bolsonaro em desqualificar o trabalho dos peritos, recorrendo a uma teoria da conspiração que não encontra respaldo na ciência ou nos fatos, é mais um jogo de cena para distrair a plateia alienada que o acompanha nas redes sociais.

Falso patriotismo

O patriotismo encenado com indisfarçável oportunismo pelo presidente, sob o pretexto de defender a Amazônia, é outra grande mentira. Na realidade, Bolsonaro está impondo ao país, a despeito dos interesses e opiniões do povo, a política mais entreguista, reacionária e antinacional da história brasileira. Nem mesmo FHC, Collor ou Temer foram tão longe nesta direção.

Para favorecer governos e investidores estrangeiros, aliados a rentistas brasileiros como Paulo Guedes, o governo de extrema direita pretende entregar aos grandes capitalistas todas as estatais brasileiras, embora sejam altamente lucrativas. Banco do Brasil, Eletrobras, Caixa Econômica Federal, Correios, Casa do Tesouro e até a Petrobras integram o programa de privatizações do Palácio do Planalto.

Ansiada pelas classes dominantes, a privataria é condenada pela esmagadora maioria do povo brasileiro. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada em 10 de setembro, 67% são contra. O povo rejeita o programa de privatizações como um todo, especialmente a privatização da Petrobras e dos Correios. Segundo a pesquisa, 65% se opõem à privatização da estatal petrolífera e 60% à dos Correios. Mas o mercado quer e Bolsonaro, submisso à vontade da grande burguesia, está se lixando para o que quer, sente e pensa o povo brasileiro.  

A entrega do pré-sal às multinacionais e o alinhamento incondicional do Itamaraty aos Estados Unidos tampouco estão em harmonia com os interesses e a soberania nacional. Só por tolice ou má fé é possível imaginar que o imperialismo mais agressivo do planeta (que no Brasil apoiou os golpes de 1964 e 2016) advoga a soberania e o desenvolvimento dos mais países, e especialmente dos mais pobres.

O espírito de vira lata e o descarado puxa-saquismo no relacionamento com Donald Trump são motivos de piada no exterior e vergonha em nosso país. No discurso, Bolsonaro também fez rasgados elogios ao regime militar, deixando transparecer seu espírito autoritário e suas propensões fascistas.

Recuperação econômica?

Bolsonaro também faltou com a verdade ao abordar a economia. Garantiu que a produção ingressou num ciclo de recuperação  e a confiança internacional foi resgatada. Não citou uma só estatística para corroborar sua conclusão. Não citou porque não existe. 

A verdade é que o desempenho da economia piorou após a ascensão do capitão reformado à Presidência, o desemprego em massa não cedeu (alcançando cerca de 18 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, incluindo os chamados desalentados), os salários caíram e o que realmente avançou foi a funesta precarização do emprego e das relações trabalhistas. Em agosto deste ano cerca de 40 milhões estavam na informalidade (trabalhando por conta própria ou sem carteira assinada), um recorde histórico.

As perspectivas oficiais para a economia também não são otimistas. As previsões do mercado, e até mesmo do governo, sinalizam que o Brasil continuará atolado no pântano da estagnação neste ano (com expansão inferior a 1% do PIB) e também no próximo (com resultado não muito melhor).

O presidente também investiu contra o cacique Raoni Metuktire, considerado o principal líder indígena do Brasil, numa grosseira retaliação às posições de Raoni, que criticou a política do governo para o meio ambiente e a Amazônia e pediu a saída de Bolsonaro. “O Bolsonaro está fazendo coisa ruim. A gente tem que tirar ele logo”, disparou o cacique durante entrevista na Alemanha.   

Calúnias contra Cuba   

O capitão fascista também não se esqueceu de caluniar Cuba e Venezuela, certamente para agradar o patrão Donald Trump (único líder que elogiou, num deslavado puxa-saquismo). Disse que o governo da ilha socialista tem milhares de agentes na Venezuela e também tinha infiltrado seus espiões no Brasil por meio do programa Mais Médicos. 

“Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional. Foram impedidos de trazer cônjuges e filhos, tiveram 75% de seus salários confiscados pelo regime e foram impedidos de usufruir de direitos fundamentais, como o de ir e vir. Um verdadeiro trabalho escravo, acreditem. Respaldado por entidades de direitos humanos do Brasil e da ONU.”

A calúnia mereceu um desmentido da agência “Aos fatos”, que checa a veracidade de notícias e discursos: “Dados do Tribunal de Contas da União de 2017 mostram que, dos 18.240 médicos participantes do programa, 5.274 eram formados no Brasil (29%), 1.537 tinham diplomas do exterior (8,4%) e 11.429 eram cubanos e faziam parte do acordo de cooperação com a Opas (62,6%). Conforme determina a Lei 12.871/2013, que instituiu o programa Mais Médicos, os profissionais cubanos precisavam apresentar documentação que comprove formação em curso superior de Medicina e autorização para exercício da profissão no exterior. Logo, a declaração de Bolsonaro é falsa.”

O chanceler cubano não deixou por menos: “Eu rejeito categoricamente as calúnias de Bolsonaro contra Cuba. Ele está delirando e anseia pelos tempos da ditadura militar. Ele deveria cuidar da corrupção de seu sistema de justiça, governo e família. Ele é o campeão do aumento da desigualdade no Brasil”.

Sobre a repercussão do odioso pronunciamento no meio diplomático, o jornalista Jamil Chade, correspondente da UOL, relata: “Jair Bolsonaro não tinha chegado nem sequer à metade de seu discurso e meu WhatsApp, Signal e email já estavam sendo bombardeados por mensagens de diplomatas e representantes de entidades internacionais. Todos chocados com o que estavam ouvindo. Mas uma das mensagens, particularmente dura, veio de um representante que faz parte da cúpula das Nações Unidas: “Ele (Bolsonaro) acabou de perder a última chance de ser respeitado”. Em outra mensagem, um mediador perguntava: “Há algo mais extremo que essa visão de mundo?”

Umberto Martins