Tiririca: pior não fica?

O voto folclórico, pitoresco, brincalhão, como manifestação deformada de “protesto” expõe limitações do próprio sistema eleitoral e demonstra a urgência da reforma política para introduzir o voto em listas e o financiamento público de campanhas.

Entra eleição, sai eleição, e a coleção de “cacarecos” da história política brasileira aumenta. Cacareco, um rinoceronte do Zoológico de São Paulo, foi o “vereador” mais votado para a Câmara Municipal de São Paulo em 1959. Trinta anos depois, em 1988, foi a vez do Macaco Tião, um chimpanzé do Zôo do Rio de Janeiro que ficou em terceiro lugar na eleição para a Prefeitura.

Eles representaram o desânimo do eleitor. Em 1959 a luta democrática avançava, havia ainda algum eco da comoção popular provocada pelo suicídio do presidente Getúlio Vargas, a falsificação dos resultados eleitorais ainda era muito comum, assim como o voto de cabresto e outros inúmeros mecanismos ilegais para falsear a manifestação da soberania popular nas urnas.

O lançamento do nome de Cacareco ocorreu em Osasco que era, na época, um bairro da zona oeste de São Paulo e cuja luta pela autonomia municipal esbarrava na oposição dos vereadores da capital. Lá, foram impressas cerca de 100 mil cédulas eleitorais (na época eram os candidatos e partidos que forneciam esse documento para o voto, e não a Justiça Eleitoral) em nome do símbolo do protesto. Quase imediatamente o movimento se espalhou pela cidade de tal forma que, como registrou a edição da revista O Cruzeiro (uma espécie de Veja de então), o “candidato” teve uma média de 20 a 30 votos por urna, em todos os bairros. Foi, de longe, o mais votado, com quase 100 mil votos – mais do que o partido que mais recebeu votos, que teve cerca de 95 mil, e muito mais do que o vereador com maior votação, que teve 11 mil.

Três décadas depois o Brasil vivia o primeiro ano da Constituição de 1988 – que a direita conservadora classificou como um “desastre” – estava às vésperas da primeira eleição presidencial direta depois do jejum de 28 anos imposto pela ditadura militar (a última eleição foi a de 1960, que elegeu Jânio Quadros) e assistia ao início do embate aberto das correntes avançadas e progressistas contra o neoliberalismo que dava seus primeiros passos por aqui e o prestígio do governo do presidente José Sarney era declinante em todo o país.

Na eleição municipal daquele ano (que, em São Paulo, foi vencida pela candidata do PT, Luiza Erundina e, no Rio de Janeiro, por Marcelo Alencar, do PDT) os humoristas do Casseta e Planeta, que tinham o programa TV Pirata na Globo, lançaram a candidatura do Macaco Tião. Ele foi o terceiro mais votado, com 400 mil votos, ou 9,5% do total.

Depois da implantação do voto eletrônico, ficou impossível usar como protesto o voto nulo ou candidaturas falsas como estas do rinoceronte paulista e do chimpanzé carioca. O instrumento para a manifestação do desencanto de uma parcela do eleitorado passou a ser veiculado, nestas condições, através da opção por candidaturas reais, com registro e tudo mais, mas que a mídia e grande parcela do eleitorado consideram inusitadas. É o caso das candidaturas notórias, na eleição deste ano, de personalidades como o humorista e cantor Francisco Everardo Oliveira Silva, o “Titirica” (PR); da modelo e apresentadora de TV Suellem Aline Mendes Silva, “Mulher Pêra” (PTN); e da funkeira carioca Tatiana dos Santos Lourenço, a “Tati Quebra Barraco” (PTC).

O caso mais notório é o do humorista Tiririca, cujas palavras de ordem ganharam a boca do povo, como a que diz “Vote Tiririca, pior do que está não fica”. Apesar disso, o candidato não se apresenta como uma alternativa jocosa, humorística. Diz que, se eleito, vai ser deputado federal como os demais. “Eu tenho que chegar lá com moral, para conseguir as coisas, mas primeiro eu tenho que ganhar”, alcançar o poder para “fazer pelos outros”. Defende criminalizar o preconceito contra os nordestinos (ele nasceu no Ceará), criar uma lei para “regulamentar os partos” e outra com “incentivos fiscais para circos”.

Assim, visto de perto, não é diferente de tantos candidatos que, de alguma forma exprimem a permanência de uma consciência política ainda limitada em fatias do eleitorado (e não só entre os mais pobres, mas principalmente em extensas camadas da chamada classe média. Revela problemas sensíveis não só dessa “consciência média”, particularmente dos setores menos politizados e informados, mas também a sensibilidade desse contingente da população à permanente campanha da mídia dos patrões pela desmoralização da política, do Congresso e da própria democracia representativa. Finalmente – o que é o mais grave – põe a nu as mazelas do próprio sistema eleitoral.

A cada vez que um jornal, uma revista, um noticiário de televisão, mostram a imagem do plenário vazio da Câmara dos Deputados como exemplo da falta de empenho e seriedade dos parlamentares no desempenho de seus mandatos, o resultado é a desmoralização daquela instituição e de seus membros. A divulgação rotineira de escândalos de corrupção envolvendo parlamentares amplia aquele esforço de desmoralização, generalizando injustamente graves irregularidades cometidas por alguns parlamentares e que passam a marcar a imagem do conjunto da instituição, e a própria política como atividade onde ocorre o entrechoque de programas para o país e a defesa de interesses que não são pessoais, mas de classe. Difunde a imagem de que os políticos são poderosos, ricos e corruptos. De que os deputados não trabalham e defendem apenas seus interesses pessoais.
Este fenômeno tem raízes na própria estrutura da luta política nas democracias ocidentais. A prolongada crise vivida nas economias capitalista centrais desde a década de 1970, e a saída neoliberal implantada desde então, fez ruir a crença em projetos coletivos alternativos ao sistema capitalista, e colocou o indivíduo e suas vicissitudes no centro das inquietações.

O desencanto com a política, na Europa e nos EUA, traduz-se desde então em elevados níveis de abstenção eleitoral e no declínio eleitoral de partidos tradicionais e daqueles com ligações com o movimento operário e popular, levando a opções, muitas vezes, por saídas radicais de direita, que também acabam enlameadas e alternam sucessos eleitorais com derrotas acachapantes.

No Brasil, o protesto parece ter outro significado: na maior parte das vezes o protesto popular nas urnas ocorre nos momentos (como as décadas de 1950/60, de 1980 e, agora, nos anos Lula) em que, no conflito com as forças do progresso social, a direita e seus aliados ficam sem outro discurso a não ser o da desmoralização sistemática das instituições democráticas. É o ovo da serpente que gesta o fascismo…

Mas há outro aspecto que precisa ser lembrado: as mazelas do sistema eleitoral. No Brasil, tradicionalmente os eleitores votam em candidatos e não em partidos, sistema que está na raiz desta forma de protesto focado em personalidades. E que expõe a urgência de uma reforma política que mude este quadro implantando o voto em lista e o financiamento público de campanha.

A direita e os conservadores têm urtigas quando se defende esta proposta que choca de frente com seus interesses: o voto em lista reforça os partidos pois leva o eleitor a optar por um ou outro dos programas que os partidos defendem. E é uma prática com a qual a imensa maioria dos brasileiros está habituada: voto em lista é voto “em chapa”, como ocorre em eleições sindicais, em grêmios, entidades estudantis e outras cujas diretorias são eletivas. Além de fortalecer os partidos, o voto em lista impede o uso de biombos personalistas ou jocosos para esconder programas antipopulares que os partidos da direita não podem apresentar abertamente.

O financiamento público de campanha é outro privilégio dos ricos que uma reforma política como esta eliminaria, promovendo uma igualdade efetiva, pelo menos ao nível legal, entre todos os que concorrem a eleições, sejam ricos ou pobres. No formato atual, os candidatos ricos ou ligados às classes dominantes ocupam pole positions dadas pelos recursos fartos de que podem dispor. Os pobres dependem de empréstimos, doações e outras formas de obtenção limitada de recursos.

Este é o caldo de cultura onde vicejam os “cacarecos”, os “macacos tiões” e, também, os “tiriricas”. Enquanto não mudar, eles terão espaço para existir.


José Carlos Ruy é jornalista e editor de “A Classe Operária”

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