Sistema de saúde precisa inverter prioridades

A divulgação recente de informações a respeito do mau desempenho dos planos privados de saúde oferece a oportunidade para a discussão a respeito do processo de mercantilização dos serviços públicos em nosso país.

Nossa Constituição prevê que uma série de direitos sociais sejam considerados marcos da cidadania e de uma sociedade democrática e inclusiva. O artigo 196, relativo à saúde, diz que ela é “um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e de acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Apesar de prever também a possibilidade de participação da iniciativa privada no setor, no texto constitucional ela é definida como complementar à ação pública e deve ser objeto de regulamentação e fiscalização pelo Estado. No entanto, o período posterior a 1988 foi marcado por um aprofundamento da ideologia neoliberal e pela expansão das fronteiras de acumulação do capital por todo o planeta. O empreendimento capitalista se viu reforçado como alternativa de organização das sociedades.

Aqui no Brasil, acabou sendo reforçada a ideia de que a presença do Estado na atividade econômica seria prejudicial e ineficiente. Além disso, as sucessivas políticas de ajuste econômico previam a redução dos gastos públicos, em especial na área social. O resultado da combinação desses dois movimentos foi a tentativa de sucateamento do modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) e o crescimento da participação da iniciativa privada na oferta dos serviços dessa natureza.

Assim, pouco a pouco começa a se consolidar a mercantilização das atividades de saúde. Cada vez mais esse tipo de serviço público passa a ser tratado de acordo com as leis de oferta e demanda, o chamado “mercado”, como se estivéssemos lidando com a compra e venda de batatinha na feira livre.

Os serviços de saúde são equiparados a mercadorias e começam a ser precificados, com atribuição de valores para consultas, procedimentos, medicamentos, mensalidades, exames laboratoriais e tudo o mais. Nessas condições, vale a lei da selva: quem não apresenta condições de pagar, fica excluído. E aqui estamos tratando de coisas como doença, saúde, vida, morte.

As instituições privadas atuantes no setor mudaram completamente de perfil. Pouco a pouco, as antigas entidades religiosas, filantrópicas e sem fins lucrativos foram substituídas por empresas capitalistas, que estão em busca do lucro e da remuneração do investimento realizado.

A novidade mais recente foi a compra da Amil, empresa líder do setor, pela multinacional norte-americana United Health por R$ 10 bilhões. Esse investimento tem, com toda a certeza, uma previsão de retorno rentável: a fórmula é obtida pelo aumento das receitas e redução das despesas. Não há milagre fora disso.

A aprovação dessa operação, sem nenhuma restrição ou condicionalidade, por parte dos órgãos reguladores só evidencia as dificuldades que o sistema público de controle apresenta para defender os verdadeiros interesses dos usuários e da sociedade.

Na verdade, na maior parte dos casos, há uma tendência das agências reguladoras serem capturadas pelos interesses das empresas atuantes no sistema.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) decidiu, agora em janeiro, pela proibição de comercialização de 225 planos de saúde privada, oferecidos por 28 empresas do setor. Ora, estamos diante de um verdadeiro escândalo do sistema. Mas em outubro, a agência já havia suspendido a comercialização de 301 planos.

Tais fatos demonstram a falácia da privatização como alternativa de elevação de qualidade dos serviços de saúde. Como a rede pública apresenta deficiências derivadas da crônica falta de investimento em equipamento e de remuneração de seu pessoal, cada vez mais ganha espaço nos meios de comunicação a ideia de que o plano de saúde privado é a solução.

O que o sistema de saúde necessita é uma total inversão de prioridades. Isso passa pela injeção de vultosos recursos orçamentários e pelo fortalecimento da rede oferecida pela União, estados e municípios. Aumentar as verbas e aperfeiçoar a qualidade dos serviços públicos é o caminho para assegurar o que determina nossa Constituição.


 

Paulo Kliass é doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

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