Reflexões na encruzilhada

A ascensão do neoliberalismo, nos anos 80/90, se iniciou com a flexibilização das relações entre empregados e empregadores, e o retorno aos costumes do fim do século 19, que protegiam apenas, e com ferocidade, os rendimentos do capital. As empresas e os governos passaram a demitir seus funcionários e a contratar fornecedores de mão-de-obra, reduzindo sua responsabilidade direta. Voltamos ao tempo em que muitas pessoas viviam de alugar escravos. Os textos de Machado de Assis são rotineiros em mostrar os ociosos pequenos burgueses do Império, que viviam de seus negros alugados e dos juros de apólices emitidas pelo Estado.

Para alguns estudiosos (entre eles Hannah Arendt) são tênues as diferenças entre o empregado e o escravo. A principal delas é que o assalariado é escravo por tempo parcial e goza de alguns direitos, entre eles o de não ser espancado. A grande época de acumulação capitalista, no século 19, foi a de maior exploração do trabalho. Não é preciso ser marxista para entender que só o trabalho gera riqueza e que é da apropriação da diferença entre o salário e o valor de mercado de um produto que se reúnem as grandes fortunas e se estabelece o poder. Naquele tempo, denunciado por Marx e outros, o horário de trabalho, até mesmo nas minas de carvão, era de 12 a 16 horas por dia, e dele participavam mulheres e crianças, com salários que não davam sequer para comer, e sem um dia de descanso na semana.

A voracidade do capitalismo era de tal ordem que os industriais ingleses decidiram importar coolies chineses, para ganhar menos e aviltar ainda mais os salários dos nacionais. A exaustão física dos trabalhadores britânicos e a desnutrição provocaram a redução de sua estatura – tal como ocorria até recentemente no Nordeste do Brasil. A consciência dos culpados, como sempre ocorre, se manifestava na hipocrisia filantrópica, denunciada por George Bernard Shaw com a força irônica de Major Bárbara, em 1905. Só a partir de 1906, com a criação do Labour Party, a situação começou a amenizar-se. A Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, ao criar o sistema soviético, provocou legislações de proteção do trabalhador na Europa e nas Américas. Com a vitória contra os alemães, em 1918, essa proteção foi tema da Conferência de Paz de Versalhes, em 1919, que decidiu criar a Organização Internacional do Trabalho, instalada naquele mesmo ano em Genebra. Uma das primeiras resoluções da OIT foi limitar a 48 horas semanais o horário de trabalho. Trata-se, portanto, de uma decisão tomada pela comunidade internacional há quase 90 anos.

Agora, no entanto, a Europa volta a discutir o retorno ao sistema de economia liberal do período de ascensão da burguesia industrial e financeira, ao propor, mediante opção contratual entre patrões e empregados, flexibilização que permita até 65 horas semanais: mais de 10 horas corridas em seis dias da semana, ou 12 horas diárias de segunda a sexta, com mais cinco aos sábados.

A proposta é da mesma Inglaterra, e vem do primeiro ministro trabalhista, Gordon Brown. Ela parte de uma moralidade de algibeira, a da liberdade entre os contratantes (opting out, no jargão neoliberal britânico). O trabalhista Brown repetiu o conservador John Major, que havia aprovado o programa em 1993. O fato concreto é que há 3,2 milhões de trabalhadores ingleses trabalhando mais de 48 horas por semana, dos quais 500 mil trabalhando mais de 60 horas semanais. Volta-se assim há mais de um século, quando a jornada era de 12 horas. Ontem, o Parlamento Europeu rechaçou a proposta de flexibilização, graças ao trabalho do deputado socialista espanhol Alejandro Cercas. Mas os governantes europeus que, com Berlusconi e Sarkozy à frente, haviam proposto a extensão do trabalho a 65 horas semanais, já demonstram o interesse de flexibilizar um pouco a flexibilização e retornar ao Parlamento de Estrasburgo com nova iniciativa.

Já há desemprego e recessão nos Estados Unidos e na Europa: existem mais estoques do que compradores. Se a jornada de trabalho for aumentada, milhões serão demitidos, agravando-se a crise. A inteligência elementar aconselharia a reduzir a situação, a jornada de trabalho, a fim de que mais pessoas tivessem empregos, recebessem seus salários e consumissem. Com isso, poderia recuperar-se o processo econômico – sob a força coercitiva do Estado. Mas não se pode exigir bom senso de homens como Bush, Brown, Berlusconi e Sarkozy.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.