Prisma invertido: mais algumas reflexões sobre a Portaria 620 do Ministério do Trabalho

Por Valdete Souto Severo (Foto: Breno Esaki/Agência Saúde)

Como escrevi recentemente, com Jorge Souto Maior, a portaria 620 do Ministério do Trabalho proíbe a despedida por justa causa de quem não está vacinado, assim como proíbe a exigência de cartão de vacinação. Foi proposta por um governo que se negou a comprar vacinas; boicotou medidas de distanciamento social; não protegeu o emprego de quem se expôs, nem de quem adoeceu nos últimos meses. Não se trata, portanto, de política de segurança e respeito ao trabalho. Isso, porém, não impede de reconhecer seus aspectos positivos, nem nos autoriza a ignorar seu texto. Ao contrário, em um ambiente no qual o governo atua para que a imunização não ocorra, não é razoável que empregadores utilizem o argumento da ausência de vacinação para despedir ou impedir o acesso ao emprego. Quem defende direitos sociais devia saber disso. Ainda assim, a portaria foi recebida com críticas pelas centrais sindicais e mesmo pelo MPT. Uma ação judicial já foi inclusive proposta junto ao STF.

E eis que nos vemos diante desse prisma invertido: o governo edita portaria que protege o emprego; os representantes dos trabalhadores defendem punição.

Como compreender isso?

A violência real e simbólica de que estamos sendo vítimas desde o início desse governo conduz a críticas apressadas e irrefletidas, mas não explica como é possível, com tanta facilidade, arrastar pessoas comprometidas com a luta por um mundo melhor, para o raciocínio neoliberal que essas mesmas pessoas pretendem combater.

Recentemente, a Lei nº 14.151 estabeleceu o direito da empregada gestante de permanecer afastada das atividades de trabalho presencial, sem prejuízo de sua remuneração, durante a pandemia. A reação imediata foi a de questionar quem pagaria o salário durante esse afastamento, como se fosse razoável impor dúvida quanto ao principal dever do empregador em uma relação de trabalho. Aliás, a própria questão da punição a empregadas e empregados que recusem vacinação foi proposta e debatida, quando ainda sequer tínhamos vacinas disponíveis. Esses exemplos revelam uma condição estrutural de resistência à efetividade de direitos sociais. O quanto está naturalizada a percepção de que quem vive do trabalho é cidadão de segunda ordem. Afinal, não houve a mesma reação contra empregadores negacionistas. Também não houve manifestação pública pela imunização precoce das trabalhadoras e trabalhadores que, sem vínculo de emprego reconhecido, seguiram expondo seus corpos durante a pandemia, limpando casas, entregando alimentos ou transportando pessoas. As centrais não se opuseram ao texto da MP 936, reivindicando apenas que a redução de salário – em plena pandemia – contasse com a participação sindical. Pois não é que nas duas únicas hipóteses de legislação protetiva, vozes alçaram-se para criticar as medidas? E, nesta última, ainda que talvez sem essa intenção, compactuando com a punição a quem trabalha.

Assim como a portaria não objetiva a defesa da vida e da saúde, mas seu texto acaba explicitando a necessidade de respeito ao direito fundamental de proteção contra a despedida que, em uma sociedade como a nossa, é elemento essencial para a manutenção da vida; as críticas apressadas a ela formuladas, feitas ao argumento de defesa da obrigatoriedade da vacinação, acabam por estimular a perda do emprego.

A inversão é múltipla. Não se restringe à posição assumida por cada um dos lados. Se dá também entre o objetivo e o resultado da portaria, e o objetivo e o resultado da crítica. A portaria, sem que fosse essa a intenção de seus criadores, produz proteção social. Seus críticos, pretendendo a defesa da vida, assumem a lógica punitivista que produz exclusão e miséria. Vejam só que situação!

A pressa facilitou tudo. No dia seguinte à edição da portaria já havia nota, ação proposta junto ao STF e muitas manifestações na grande mídia, preocupada em dar espaço às críticas. E nem isso causou suspeita. Uma mídia que sempre silenciou diante das agressões aos direitos sociais, que defendeu explicitamente a redução de salário por acordo individual, que fez verdadeira campanha pela “reforma” trabalhista e pelo desmanche da Previdência, de repente convida sindicalistas para falar em horário nobre. Seus representantes perceberam, ao contrário de alguns de nós, que a tentativa de proteção aos negacionistas acabou traduzindo-se, na materialidade do texto da portaria 620, como explicitação da perspectiva solidária contida na ordem constitucional, que veda despedida arbitrária e é contrária à justa causa, especialmente quando praticada sem garantia do contraditório e da ampla defesa.

Enquanto isso, acreditando lutar contra o negacionismo, representantes da classe trabalhadora acabaram por defender, ainda que implicitamente, punição sem previsão legal. Abandonaram trabalhadoras e trabalhadores que por inúmeras e diferentes razões, a maior parte delas estrutural, ainda não estão imunizados. Deixaram de lado o pressuposto de que o direito de manter-se empregado é tão relevante, da perspectiva social, quanto o direito à imunização. Não perceberam que opor o direito ao trabalho à obrigatoriedade da vacinação é um equívoco grave, pois nega o caráter social de todas as normas trabalhistas. Além disso, é uma aporia, já que não atinge a finalidade de imunização pretendida. Quem perder o emprego por não estar vacinado seguirá recusando vacina e terá dificuldades para sobreviver. O problema social será ainda maior. Não se combaterá o flagelo da pandemia; no máximo se estará contribuindo para aumentar o número de pessoas miseráveis no Brasil. Por fim, não se deram conta de que sequer se trata de impedir ou não a despedida; trata-se do direito de despedir – por justa causa. Ou seja, de suprimir o trabalho retirando todos os direitos que decorrem da extinção do vínculo, impondo, portanto, severas privações, em uma realidade de desemprego crescente.

A reação à portaria pode ser lida como sintoma da violência institucional a que temos sido submetidos, mas não é só isso. Afinal, essa legislação torna claro que, sob qualquer perspectiva, não há poder potestativo de despedir no Brasil, desde 1988. Se nem mesmo a negativa em imunizar-se, com todas as consequências sociais que daí decorrem, justifica a aplicação da justa causa, já é hora de extirpar do ordenamento jurídico essa previsão inconstitucional. Essa é uma das principais bandeiras de luta da classe trabalhadora, pois garantir o emprego em uma sociedade capitalista é garantir sobrevivência. Restringir as hipóteses de perda do emprego, reconhecer e efetivar o direito à motivação da despedida e exigir dos empregadores atuação concreta em favor da imunização que, da perspectiva da relação de trabalho, significa a construção de um ambiente saudável, eis o que devemos defender. E nada disso se contrapõe aos termos da portaria 620.

A racionalidade neoliberal estimula conclusões imediatas, moldadas pela visão individualista de mundo, que atua a partir da identificação do inimigo para puni-lo ou, no limite, eliminá-lo. A reflexão que trago aqui é de que à pressa em se opor a um governo que nos atormenta, soma-se uma cultura individualista, colonial e escravagista que naturaliza a percepção de que as trabalhadoras e trabalhadores constituem o Outro no qual não nos reconhecemos. Logo, são elas e eles que devem sempre suportar, com o sacrifício de seus postos de trabalho, de seus direitos ou da própria vida, todas as adversidades promovidas por escolhas políticas que sistematicamente os excluem das possibilidades de viver com decência. É isso que permite a defesa concomitante dos direitos sociais, inclusive à imunização coletiva, e da despedida sem direitos, de quem não se imuniza, atribuindo ao indivíduo uma conduta que resulta de práticas institucionais que talvez nem saibamos mais ao certo como combater.

Não penso que se trate de algo consciente e intencional. Ao contrário, trata-se de algo que nos atinge em um nível profundo e inconsciente, contra o que precisamos lutar constantemente. Nessas horas, é sempre bom lembrar que quem quer viver em uma sociedade diversa, plural e inclusiva, luta por diálogo, acesso à informação e, sobretudo, aposta na compreensão de que compartilhamos um destino comum. Não separa seres humanos entre bons e ruins, negacionistas ou não, passíveis de proteção ou destinados à morte. Essa é a lógica fascista. Nossa aposta deve ser outra: dialogar, demonstrando a importância da imunização para o futuro da humanidade. A reação à portaria 620 revela que sem uma autocrítica constante, para a desconstrução dessa ideologia que nos atravessa, será muito difícil resistir às armadilhas neoliberais e construir uma racionalidade verdadeiramente solidária, tal como sonhamos e ousamos estabelecer na Constituição de 1988.

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.