Por dentro, pão bolorento…

O país está impactado por vários retrocessos, alguns em andamento e outros já perpetrados pelo atual governo afetando políticas públicas implementadas na última década. Os exemplos são abundantes, bastando ver as matérias que o governo golpista tem se empenhado em aprovar no Congresso Nacional. Mas existem outros retrocessos que são menos visíveis ou conhecidos. Quero aqui mencionar um específico da pauta da cultura: a questão dos direitos autorais.

Durante os governos Lula e Dilma, o Ministério da Cultura foi um dos principais protagonistas em nível mundial das discussões envolvendo direitos autorais. São vários os exemplos neste sentido, que vão desde a luta contra regras absurdas e desnecessárias que impedem a fruição da cultura e apenas beneficiam as grandes transnacionais do setor, até a proposição recente de uma ambiente digital onde haja uma proteção equilibrada que beneficie o autor e também quem consome cultura.

Um desses feitos foi o Tratado de Marraqueche. Para quem não conhece, trata-se de um instrumento internacional proposto pelo Brasil em 2009 no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) que beneficia pessoas cegas ou com qualquer outro tipo de deficiência que impeça o pleno acesso a obras impressas. Com esse Tratado, os países se obrigam a estabelecer, em suas legislações de direitos autorais, regras que permitem que os beneficiários do Tratado, e instituições que com eles lidam, tenham acesso a obras em formatos acessíveis, como Braille, Daisy etc. Também criar condições para que haja intercâmbio, entre os países, das obras nesses formatos. Esse é um feito que não apenas em termos de política internacional do Brasil, mas também no campo dos direitos humanos.

A promoção da acessibilidade e da inclusão das pessoas com deficiência é uma das grandes agendas deste século XXI, e o Tratado de Marraqueche tem o potencial de ampliar exponencialmente o número de obras em formatos acessíveis para tais pessoas. Foi ainda o primeiro Tratado da OMPI no campo das limitações e exceções aos direitos de propriedade intelectual, e a primeira vez que o sistema internacional de propriedade intelectual dialogou com o sistema internacional de direitos humanos. Tudo isso fruto de inciativa do Brasil.

Pois bem. O atual ministro da Cultura anuncia no site do MinC, com pompa e orgulho, a entrada em vigor do Tratado de Marraqueche para facilitar o acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para acessar o texto impresso. A notícia é realmente fantástica. O tratado foi aprovado em 2013, depois de uma negociação liderada pela equipe de direitos intelectuais do Ministério da Cultura brasileiro no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual. O Brasil ratificou o acordo em 2015 com uma Emenda Constitucional!

Poderia ser apenas mais um caso de surfar em trabalho de governos anteriores, habitual no poder público, especialmente durante governos golpistas. Mas é bem mais grave, porque ela representa o típico caso de demagogia institucional. Enquanto o governo posa de progressista no exterior, no Brasil ele inverte a orientação da política de direitos autorais, respondendo aos lobbies dos intermediários, e altera toda a equipe responsável pela negociação do acordo no exterior.

O Tratado de Marraqueche foi uma conquista em que poucos acreditavam ser possível, tal a feroz oposição que sofreu dos grupos representantes da indústria do livro, mas também das majors da música, do audiovisual (Hollywood) e dos radiodifusores. Eles viam nesse tratado um precedente perigoso: o de impor limites ao “sagrado direito de propriedade intelectual” para garantir direitos humanos fundamentais. No caso, o direito das pessoas com deficiência visual de terem acesso pleno a produção literária. O pensamento da indústria e das grandes corporações sobrepõe os direitos de propriedade a outros direitos humanos fundamentais.

A delegação brasileira, com o suporte da equipe técnica do MINC, foi a grande liderança que possibilitou essa vitória. Esse reconhecimento vem, em primeiro lugar, dos próprios favorecidos: todas as organizações de pessoas com deficiência visual no mundo são unânimes a esse respeito. E compartilham dessa opinião quase todas as delegações dos países que participaram da conferência diplomática que aprovou esse improvável tratado. O ministro da cultura teve que passar, nesta quarta-feira (05/10) pelo constrangimento de ouvir em plenário, em Genebra, esse reconhecimento até de forma nominal. Não foi o primeiro feito daquela equipe, hoje dizimada pelo ministro. Graças a esse grupo de servidores, o mesmo protagonismo esteve presente na aprovação da Convenção da UNESCO para a promoção da Diversidade Cultural (2005) e da “Agenda para o Desenvolvimento” da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (2006). Aliás, foi exatamente a aprovação dessa Agenda que viabilizou o Tratado de Marraqueche. Os que acompanharam esses processos sabem muito bem disso.

Havia no MINC uma sólida e histórica expertise na área dos direitos intelectuais, desde os tempos do governo Fernando Henrique Cardoso. Durante os governos Lula e Dilma, a política assumiu uma clara perspectiva de combinação de defesa dos direitos dos autores, criadores e usuários. Mas assim que o ministro Calero Lero assumiu, a equipe do MinC responsável por isso foi esvaziada (reduzida a menos da metade) e devidamente “fritada”. Alguns profissionais – servidores concursados – não aceitaram o tratamento desrespeitoso e pediram exoneração; outros foram exonerados sem qualquer aviso prévio. Nas cínicas palavras da autoridade, o setor apenas foi “desaparelhado”.

Porém a leviandade não parou por aí. Alguns se tornaram persona non grata, e foram alvo de um mal disfarçado macarthismo. Curiosamente, uma das maiores oposições ao tratado de Marraqueche foi a MPA – Motion Pictures Association, defensora dos interesses da indústria cinematográfica norte-americana, dos estúdios de Hollywood e que em nada é afetada pelo Tratado, uma vez que ele se direciona ao texto impresso. E aí entra um dado curioso para o qual poucos atentaram. Dois dias após ser empossado, o ministro recebeu o representante da MPA no Brasil, em pleno feriado de Corpus Christi. A queixa da MPA foi que, no entender da indústria, era dada pouca atenção ao combate à pirataria. O pedido foi prontamente atendido. Calero Lero chamou o ex-secretário executivo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria-CNCP para cuidar do setor, já apontando qual será a política pública na nova orientação prioritária: a defesa de interesse privados de grandes corporações.

Um outro queixoso do Tratado de Marraqueche, embora de forma mais dissimulada, foi a ABERT – Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão. Para quem não sabe, essa sigla é quase sinônimo de Rede Globo de Televisão. Queriam que o MINC deixasse essa pauta humanista de lado e se empenhasse mais num tratado que dá mais direitos autorais para as emissoras de rádio e TV. Ao que parece, também foram contemplados. O Secretário nomeado para cuidar do setor é um advogado que chefiou por nove anos o departamento jurídico da Fundação Roberto Marinho, e que ao longo de toda a negociação do Tratado nunca escondeu que era contra o mesmo. Assim se constrói a nova política pública para a proteção dos direitos intelectuais no Brasil: partindo da defesa dos interesses do cinema de Hollywood, Rede Globo e das grandes corporações. Criadores, autores, artistas e usuários não devem ter grandes esperanças em relação ao exercício de seus direitos (de autor e de acesso à cultura) na internet. Já as gravadoras e editoras musicais estão, evidentemente, otimistas.

A bela viola da ação internacional eclipsa o pão bolorento da política doméstica. Enquanto celebram externamente o Tratado de Marraqueche, entregam o comando da matéria no país a representantes daqueles que foram seus maiores adversários. O ministro que preside a primeira assembleia do Tratado não promulgou o tratado, não propôs nenhuma reforma da Lei de Direitos Autorais para incorporar o tratado, não reconheceu nenhuma “entidade autorizada” prevista no tratado, não trocou nenhum livro com outros países e não levou nenhum representante dos cegos brasileiros para Genebra. Quem não conhece a política doméstica que compre a demagogia institucional.

Juca Ferreira – Ministro da Cultura no segundo governo Lula e no segundo mandato de Dilma Rousseff.

Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor. 

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