Obama e o presidente do banco central chinês

Não se deve esperar grande coisa da reunião do G-20 que será realizada em Londres na próxima quinta-feira, 2 de abril, com o objetivo de exorcizar a recessão exportada pelos Estados Unidos. Até agora a crise tem feito pouco caso da intervenção dos Estados nas economias. Além disto, os conflitos de interesses entre as nações que compõem o grupo, donas das 20 maiores economias do planeta, tornam pouco plausível uma ação coordenada e eficiente dos governos.

O destino do padrão dólar é um bom exemplo. O tema divide opiniões e desperta paixões. Não se trata de um problema menor, que pode ser convenientemente ignorado ou jogado para debaixo do tapete. À primeira vista, a arrastada agonia do dólar não tem muito a ver com a tormenta que se abateu sobre a economia mundial. Mas, a verdade é que neste, como em muitos outros casos, as aparências não estão em harmonia com a essência dos fatos e é sempre bom lembrar o princípio da dialética segundo o qual os fenômenos sociais (assim como os naturais) estão entrelaçados e são melhor compreendidos quando se atenta para suas múltiplas interações. A propagação da superprodução e do apagão do crédito em todo o mundo tem tudo a ver com o desequilíbrio comercial e financeiro dos EUA.

Quem vai pagar a conta?

Os pacotes trilionários dos governos Bush e Obama para resgatar o sistema financeiro estão ancorados na supremacia do dólar e na suposição de que a dívida governamental em crescimento continuará sendo financiada através da atração de poupança alheia. Em outras palavras, a conta não será apresentada apenas aos contribuintes norte-americanos. Dada a carência de poupança interna dos EUA, se a brincadeira não acabar em inflação (o que não é pouco provável), o rombo nas contas da Casa Branca decorrente do ousado socorro terá de ser bancado por outros países e, neste sentido, a contribuição da China, hoje a maior credora da dívida pública americana, é certamente decisiva. Daí se deduz que as preocupações do governo comunista instalado em Pequim não são infundadas.

Ao longo dos últimos dias, as autoridades chinesas emitiram reiterados sinais de nervosismo diante da situação crítica dos EUA e das medidas adotadas com o objetivo de debelá-la, que vão elevar em US$ 1,7 trilhão o déficit federal. Com quase US$ 1 trilhão de dólares (metade de suas reservas) aplicados em bônus do Tio Sam, a China teme pela segurança dos seus ativos. O medo de um calote ou de uma substancial desvalorização do dólar (e dos títulos a ele associados) emana do crescimento exponencial da dívida externa estadunidense, impulsionada pelo déficit, que aumenta a necessidade de financiamento externo dos EUA.

Zeloso guardião?

Em entrevista concedida aos jornalistas na sexta-feira 13, de março, o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, externou as preocupações do país. “Nós emprestamos uma quantia enorme de dinheiro aos Estados Unidos. Claro que estamos preocupados com a segurança desses ativos. Para ser honesto, estou definitivamente um pouco preocupado”, disse. O porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, tentou tranquilizar o governante chinês assegurando que “não existe aplicação mais segura no mundo que investir nos Estados Unidos”.

O assessor econômico do presidente Barack Obama, Lawrence Summers, também assegurou à China que Washington é um “zeloso guardião do dinheiro investido”. Antes disto, na visita que fez à China durante o carnaval (22-2), a secretária de Estado, Hillary Clinton, fez um dramático apelo aos chineses para que continuassem comprando títulos americanos e alertou para os laços de dependência recíproca entre as duas maiores economias do mundo. “Estamos todos no mesmo barco. Ou vamos todos sair (da crise) ou cairemos todos juntos”, salientou. Registre-se que o fato do FED (Federal Reserve, banco central dos EUA) ter anunciado a emissão de 300 bilhões de dólares para aquisição de títulos do Tesouro americano sugere que o governo Obama está enfrentando crescentes dificuldades para financiar seu abissal déficit fiscal.

O padrão dólar em xeque

Tais declarações não foram suficientes para acalmar os chineses, que a exemplo de um grande número de economistas em todo o mundo, estão de orelha em pé com a crise e a reação do governo estadunidense. No dia 23 de março, o sítio do Banco Central chinês divulgou um artigo em que seu presidente, Zhou Xiaochuan, tocou em um tema sensível aos interesses do império ao sugerir a substituição do dólar como unidade de referência dos preços internacionais e reserva de valor. Xiaochuan sustentou que a crise mostrou “as fragilidades inerentes do atual sistema monetário internacional” e opinou que o dólar deve ser trocado por uma moeda supranacional, ou seja, que não estivesse associada a um país em particular, como os DEE (Direitos de Emissão Especiais) do FMI.  

Autoridades da Rússia, que fizeram proposta semelhante um mês antes, esperam que a questão seja debatida na reunião do G20 em Londres. Se isto vier a ocorrer o encontro não chegará a bom termo, pois, como era de se esperar, a sugestão não soou bem nos atentos ouvidos do Tio Sam. Desta vez, o próprio Barack Obama saiu em defesa da combalida moeda imperial. Na terça-feira (24-3), o presidente dos EUA disse que não há “necessidade de uma moeda global”, agregando que o dólar vive nos melhores dos seus dias e está “extraordinariamente forte”, o que atribuiu à confiança dos capitalistas estrangeiros. “A razão pela qual o dólar está forte agora é porque os investidores consideram os Estados Unidos a economia mais forte do mundo, com o sistema político mais estável do mundo”. 

Velha polêmica

Não se poderia esperar outra atitude do presidente dos EUA, mas a razão está com os russos e os chineses. Embora o dólar tenha recuperado nos últimos meses um pouco do valor que perdeu desde 2002 frente ao euro, refletindo a ansiedade dos investidores por “segurança”, a frágil valorização (que já está sendo revertida) é artificial e não corresponde aos fundamentos reais da economia norte-americana. O argumento de Obama, o mesmo de todos que ainda acreditam nas falsas virtudes da moeda imperial, não procede.

A polêmica sobre a saúde do padrão dólar não é nova. Na realidade, a força do dólar e as bases do atual padrão monetário internacional, ainda remanescente dos acordos de Bretton Woods, foram corrompidas pelo parasitismo da sociedade estadunidense e o desenvolvimento desigual das nações. O parasitismo se traduz na necessidade de financiamento externo, ou seja, no fato de que o valor relativo do dólar depende da injeção maciça de capitais estrangeiros nos EUA, daí o apelo patético da senhora Clinton em pleno carnaval. Como podemos considerar saudável uma moeda cuja força depende, a cada dia mais, da boa vontade dos investidores estrangeiros, entre os quais Estados superavitários (como a China) tornaram-se grandes protagonistas ao longo dos últimos anos e revelam crescentes receios com o agigantamento da dívida americana?

Decomposição

A decomposição do padrão dólar se arrasta há décadas e não há nada que Obama possa fazer para contorná-la. É falsa a suposição de que a força e o valor relativos da moeda derivam do poder militar da maior potência imperialista que o mundo já conheceu. Se fosse assim, os EUA não teriam porque se preocupar, já que ainda mantêm uma supremacia bélica incontestável, situação que tende a perdurar por muitos anos. Na realidade, a força da moeda reflete o poderio econômico relativo do império, que está em franca decadência e tende a ser ainda mais debilitada pela crise.

A gastança desatinada e as emissões sem lastro promovidas pelas autoridades econômicas para deter a recessão vão exacerbar os desequilíbrios comerciais e financeiros subjacentes à crise do capitalismo mundial e produzir uma desmoralização ainda maior da moeda estadunidense , reforçando a necessidade objetiva de sua substituição como padrão de valor e reserva global. Nesta altura da história, já não há remédio para a enfermidade do dólar. Lembremos que, no final da década de 1970 e início dos anos 80 do século passado, o ex-presidente do FED, Paul Vocker, logrou segurar a hegemonia do dólar elevando para 20% ao ano as taxas básicas de juros.

Foi uma injeção de ânimo artificial, que reverteu o fluxo de capitais no mundo e atraiu centenas de bilhões de dólares para o mercado financeiro dos EUA, revertendo a desvalorização da moeda. Todavia, a ousadia cobrou um alto preço da indústria, mergulhando-a numa brutal depressão e agravou o parasitismo da sociedade ianque, criando as condições para a atual crise. Além disto, recordemos, produziu a crise da dívida externa no chamado Terceiro Mundo, que nos custou no Brasil mais de 20 anos de desenvolvimento. Hoje, de todo modo, o Estado imperialista já não pode fazer o mesmo, pois elevar os juros na economia mais endividada do mundo seria como cravar uma estaca no coração da decadente competitividade da indústria norte-americana e não daria longa vida ao padrão dólar. Chineses e russos têm razão: chegou a hora de promover uma mudança radical na ordem monetária internacional. É hora de dar um adeus sem lágrimas ao padrão dólar. Não adianta empurrar o problema com a barriga, mas será que o G20 terá coragem de pôr o dedo na ferida?

Umberto Martins é editor do Portal CTB

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