O sertão pede água

“As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência, embora sejam o único fato em toda a nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão.”

A frase, escrita por Euclides da Cunha, soa hoje mais atual do que nunca. Passados quase cem anos desde sua morte, permanecem inalteradas as razões que levaram o autor de Os Sertões a manifestar seu inconformismo diante da falta de solução para a tragédia da seca que, volta e meia, se abate sobre boa parte do Nordeste brasileiro. Os brasileiros que hoje assistem com atenção a mais uma polêmica sobre como amenizar a penúria dos flagelados dos períodos de estiagem prolongada também se inquietam com o histórico descaso do poder público — resultado da chamada “indústria da seca”, uma forma que os setores dominantes da região utilizam para se aproveitar do povo. Da época do Império até hoje, gastaram-se fortunas para pretensamente socorrer a região, sem que os seguidos governos colocassem em ação um projeto minimamente coerente para tentar retirar da seca nordestina o caráter de fatalidade.

O fato, porém, é que há poucas coisas tão previsíveis como a seca. As grandes estiagens obedecem a um ciclo regular e costumam irromper em períodos de 12 a 14 anos. Só no século XX, o problema fustigou a região 23 vezes, entre grandes e pequenas ocorrências. Sem um ciclo de chuvas regulares, os resultados são mesmo pavorosos. No Nordeste, colhem-se apenas 600 quilos de milho por hectare. No Paraná, na mesma área, a produção bate em 8 mil quilos. Quem insiste em produzir grãos no semi-árido costuma ter, no máximo, três safras a cada dez anos. Ou seja: são sete anos de prejuízos certos.

Mas por que tem de ser assim? Se outras regiões típicas do semi-árido — como a Califórnia, o norte do Chile e o Estado de Israel — transformaram-se em grandes celeiros, por que o sertanejo nordestino ainda hoje cuida de seu roçado de subsistência de olho nas nuvens do céu?

Índices de desenvolvimento humano

A seca é um fato da vida. O que não é um fato da vida é o subdesenvolvimento. Entra ano, sai ano, continua a haver miséria ali porque não se criaram as condições que permitem o florescimento de atividades econômicas sustentáveis. E isso só vai acontecer quando se enterrar, definitivamente, distorções que são comuns no combate à seca: a esperteza política, a dilapidação de verbas públicas e a negligência pura e simples. Tudo isso redunda num grande número de obras inacabadas, como açudes e barragens construídos sem rigor técnico, que costumam ser levados pelas primeiras chuvas mais fortes. No sertão nordestino, vivem hoje 25 milhões de pessoas espalhadas por oito Estados, numa área equivalente a três vezes à do Estado de São Paulo.

Trata-se de uma região que, provavelmente, tão cedo irá sediar uma montadora de carros, uma siderúrgica ou uma grande empresa de serviços — aqueles ramos de atividade que geram empregos e criam riquezas. O desenvolvimento nessa região depende, basicamente, de seu solo e subsolo. Mas, no caso da agricultura, ao contar apenas com a boa sorte dos céus, o lavrador nordestino estará fadado a perpetuar o círculo de miséria que faz dessa parte do país a detentora de um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo. Para prosperar, é essencial que a água chegue à população. E em muitos casos, a construção de açudes e barragens não garante, por si só, o suprimento de água.

Duas safras e meia por ano

No Rio Grande do Norte, por exemplo, o açude Armando Ribeiro Gonçalves, na região do rio Açu, com quase 2,3 milhões de metros cúbicos, teve aproveitamento praticamente zero desde que foi inaugurado em 1984 pelo ex-ministro Mário Andreazza. Só há poucos anos, a água passou a ser levada para o sertão do Estado — com a inauguração de uma adutora. Nessa região, nos períodos de seca a água para consumo humano costumava chegar de trem, vinda de Natal. Mas nesse semi-árido que fustiga, que cria o Severino retirante, é possível criar uma economia dinâmica. Desde, é claro, que sejam criadas as condições de reduzir sua vulnerabilidade ao clima seco. Basta ver a transformação que a fruticultura e a horticultura trouxe aos pólos de produção irrigada nos vales dos rios Açu, no Rio Grande do Norte, e São Francisco, na Bahia e Pernambuco.

Em meio à vegetação de caatinga, que caracteriza a região, destacam-se as manchas verdes dos parreirais e de outras lavouras, como as de melões, goiabas, mangas, bananas, maracujás, acerolas, além de tomates e aspargos. Graças à irrigação, o clima seco e quente, considerado hostil, converteu-se em aliado. No eixo Petrolina-Juazeiro, cidades separadas pelo rio São Francisco — a primeira em Pernambuco e a segunda na Bahia —, os produtores de uva colhem duas safras e meia por ano. No Rio Grande do Sul, a colheita é uma só, de janeiro a março. Outras áreas da região não podem se transformar em oásis semelhante às terras irrigadas do Vale do São Francisco?

As decisões precisam ser ágeis

É aí que se insere o plano de transposição das águas do rio São Francisco, que no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva ressurgiu com força. Trata-se de um projeto grandioso. O objetivo é desviar de 50 a 60 metros cúbicos das águas do São Francisco por segundo e jogá-las nos rios que cruzam o semi-árido nordestino, tornando-os perenes. Com isso, seria possível irrigar uma área de 330 mil hectares. Há ainda estudos que sugerem engrossar as águas do São Francisco a serem transpostas com o volume excedente de bacias vizinhas. Espalhadas pelo semi-árido por uma rede de canais e reservatórios, essas águas poderiam irrigar uma área de 1,6 milhão de hectares. O custo estimado do projeto a ser implantado num prazo de 20 anos é de 18,5 bilhões de dólares.

Saber se a idéia de transposição das águas do São Francisco é mesmo a melhor solução para o Nordeste é uma tarefa que cabe aos brasileiros discutir. Um fato positivo sobressai, desde já: finalmente, começa-se a pensar numa solução de longo prazo, para enfrentar, de forma permanente, a seca e a miséria endêmica do sertão nordestino. Mas as decisões precisam ser ágeis. Não dá para ficar discutindo eternamente a questão enquanto não se abre uma bica d’água no Nordeste. O projeto pretendido pelo presidente Lula envolve canais, barragens e sistemas para fazer a água vencer desníveis. A obra demoraria pelo menos 12 anos e custaria 6,5 bilhões de dólares. Descrita assim, o plano teria para o Nordeste importância igual à daquele canal para o Panamá.

Desequilíbrio estrutural no abastecimento

Quanto a seus custos, realmente não é muito dinheiro diante do fabuloso efeito social que a transposição provocaria. Em se tratando, porém, de um plano discutido desde dom Pedro II (a idéia nasceu em 1847) e que já passou pelas mãos de vários presidentes, como Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso (FHC), é natural que o assunto ganhe sentido de urgência. Já existe desequilíbrio estrutural no abastecimento de água no Nordeste. “Obras locais, como açudes, não resolverão mais o problema”, diz Ciro Gomes, ex-ministro da Integração Nacional. Esse desequilíbrio pode levar grandes cidades, como Fortaleza, Campina Grande e Caruaru, a um racionamento permanente. Diante dessas projeções, Lula determinou que se avance com o plano.

O Plano Plurianual (PPA) de Lula destinou para a obra 2,5 bilhões de reais até 2007. O cronograma, por si só, não significa que a obra vá emplacar. Afinal, a transposição tinha o apoio do ex-presidente FHC e foi contemplada no PPA 1999/2003 com 1,7 bilhão de reais. Como se sabe, nada aconteceu. O que talvez faça a diferença desta vez são dois outros fatores. Um é o engajamento pessoal de Lula. O presidente recentemente repetiu que quer “resolver o problema do semi-árido nordestino, mexendo um pouco com a bacia do São Francisco e com a bacia do Tocantins”. O vice-presidente, José Alencar — também empenhado no plano —, percorreu os nove Estados da região, conversando com governos, líderes políticos e especialistas.

Impactos ambientais negativos

O outro fator a favor é a redução da resistência política de alguns dos chamados “Estados doadores” — Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, banhados pelo São Francisco. Na proposta original, eles apenas perderiam água — vale lembrar que estes Estados também têm problemas com a seca. A oposição era tão forte que uma audiência pública em Aracaju, em 2001, quase terminou em agressões físicas. A polícia informou que não poderia garantir a segurança dos participantes na audiência seguinte e uma liminar impediu a realização da terceira, que ocorreria em Salvador. Na nova versão, os doadores passaram a ter vantagens, como canais e obras de saneamento. O São Francisco receberia água transposta do rio Tocantins, quatro vezes mais caudaloso. Isso encarece em 1,4 bilhão de dólares o projeto, mas reduz os temores quanto à capacidade do chamado “velho Chico” de suportar a retirada de água.

O governo também tenta eliminar impactos ambientais negativos da obra. Já existe um relatório favorável, feito em 2001 pela empresa finlandesa de engenharia Jakko-Pöyry. O trabalho foi duramente criticado por não indicar problemas ambientais ocorridos em transposições em outros países. “Não vamos jogar fora o que já foi feito, mas precisaremos de mais estudos”, disse a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente. Mas o núcleo central do governo quer mostrar que o ganho ambiental com saneamento e replantio de matas supera qualquer efeito ruim. Estudos realizados pelo governo indicam que a quantidade de água — cerca de 1% da capacidade do São Francisco — a ser captada é proporcionalmente pequena e não seria capaz de abalar o equilíbrio do ecossistema.

O papel do Estado na região

Há ainda os benefícios indiretos. No projeto de pavimentação da BR-163, por exemplo, estima-se que a obra terá influência em 1,2 milhão de quilômetros quadrados, quase 15% do território brasileiro. Essa imensa área abriga hoje 1,8 milhão de habitantes em 71 municípios. Além de beneficiar a população que vive às margens da rodovia, ao melhorar o escoamento da produção agrícola, a obra teria um impacto positivo que ultrapassa os limites regionais. Na região do São Francisco, o governo declarou como de utilidade pública uma faixa de 2,5 quilômetros de cada lado dos canais, e o Incra está fazendo o levantamento da estrutura fundiária para fins de reforma agrária. Com isso, estão proibidas a venda e a compra dessas áreas.

O plano também implicaria em alargar o papel do Estado na região, com a criação de novas estatais. A primeira seria uma nova subsidiária da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, para operar e manter o sistema de canais. Depois, seriam necessárias empresas para cuidar da distribuição e repartir a água conforme o uso: irrigação, indústria e consumo humano. No Ceará, já existe a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos, criada quando Ciro Gomes era governador. Embora o Brasil tenha a maior disponibilidade de água doce do planeta, o país ainda não conseguiu superar as dificuldades decorrentes da distribuição desigual das reservas. Enquanto a Amazônia concentra 70% da água doce do país e apenas 10% da população nacional, o Nordeste dispõe de 3% da água para abastecer 30% dos brasileiros. Se não bastam outros argumentos a favor do plano, essa distribuição desigual já é suficiente para se sustentar a urgência da transposição das águas do São Francisco.

 

*Secretário de Comunicações da CTB

 

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