Por Vivaldo Barbosa, no site Brasil-247:
O jornal francês Le Monde, um dos mais respeitados do mundo, publicou magnífica reportagem neste final de semana que revela como os Estados Unidos atuaram no Brasil através do Judiciário.
A matéria merece ser lida e encontra-se no link indicado ao final.
Esta reportagem se junta a outras de jornalistas valorosos que têm trabalhado a questão. O seu valor é o foco na atuação dos Estados Unidos.
Mas antes de ler a matéria, é preciso relembrar que durante o governo FHC, Brasil e Estados Unidos firmaram acordo de cooperação em matéria de investigações na esfera do terrorismo, corrupção e crimes financeiros, inclusive de âmbito internacional.
Passou a representar o Brasil o Ministério da Justiça. Mais adiante, já no governo Lula, o Ministro da Justiça transferiu esta representação para o Procurador Geral da República.
Depois, o Procurador Rodrigo Janot transfere a representação para os procuradores da Lava Jato em Curitiba. Fechou-se o ciclo, estava feita a festa.
A reportagem não puxou esta questão.
Os principais pontos da matéria merecem ser destacados.
I – Ainda no Governo Bush, os Estados Unidos sentiam grande desconforto com a falta de alinhamento do Brasil às políticas americanas com fortes preocupações, à beira da histeria, com as questões do terrorismo, e com o crescimento de empresas brasileiras que ampliavam sua presença na África e América Latina.
O embaixador americano alerta seu governo para a necessidade de se fazer contato com gente que atuava no Judiciário e na Polícia para colocá-los a par dos métodos e dos interesses do seu governo.
É formada rede no meio jurídico, entre advogados, magistrados, procuradores, policiais, sob coordenação da Embaixada.
II – Assim, e dentro do ambiente do acordo de cooperação, foi feito contato com o juiz federal Sérgio Moro. Eles o conheciam pela atuação no caso do Banestado, onde havia forte envolvimento do sistema financeiro americano, caso que Sergio Moro havia abafado e cooperado com as autoridades americanas.
Sergio Moro viaja aos Estados Unidos e lá mantém contato com o Departamento de Justiça, FBI, o Departamento de Estado e outros organismos.
III – Foi deslocada para a Embaixada no Brasil, uma advogada vinculada ao Departamento de Justiça americano, Karine Moreno-Taxman, dita como especialista em lavagem de dinheiro e terrorismo, como “conselheira jurídica”.
Procurou-se disseminar métodos utilizados nos estados Unidos, através de cursos de formação, seminários, viagens aos Estados Unidos, como criação de grupos de trabalho anticorrupção, aplicação de sua doutrina jurídica (principalmente o sistema de recompensa para as delações), e o compartilhamento “informal” de informações sobre os processos, ou seja, fora dos canais oficiais.
IV – Esta advogada é convidada a falar para agentes da Polícia Federal, em Fortaleza. Afirmou: “Em casos de corrupção, é preciso ir atrás do ‘rei’ de maneira sistemática e constante, para derrubá-lo.”
“Para que o Judiciário possa condenar alguém por corrupção, é preciso que o povo odeie essa pessoa”. “A sociedade deve sentir que ele realmente abusou de seu cargo e exigir sua condenação”. Isto em 2009, em plena efervescência do mensalão pela mídia.
V – Moro foi levado para integrar o gabinete de Rosa Weber, (por quem, como?) recém nomeada para o Supremo Tribunal Federal, era da Justiça do Trabalho, precisava de auxiliares com expertise criminal para auxiliá-la no julgamento do mensalão.
Daí surgiu o famoso e polêmico voto que justificava flexibilizar a necessidade de provas em casos de corrupção: “Nos delitos de poder, quanto maior o poder ostentado pelo criminoso, maior a facilidade de esconder o ilícito. Esquemas velados, distribuição de documentos, aliciamento de testemunhas. Disso decorre a maior elasticidade na admissão da prova de acusação”, está no voto da Ministra.
(A reportagem não se referiu à igualmente famosa referência ao domínio do fato, utilizado pela justiça alemã para os criminosos nazistas. Só esqueceu de exigir provas do domínio, do conhecimento do fato).
VI – Em 2013, em meio a massivas manifestações populares, e com pressões internacionais, o Congresso elabora a lei anticorrupção. Adotam-se mecanismos previstos no Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei americana que permite que os EUA investiguem e punam fatos ocorridos em outros países.
Ato típico do poder econômico e político do Império. O diretor do FCPA viria ao Brasil instruir os procuradores brasileiros.
Os próprios juristas americanos observaram que a lei anticorrupção traria efeitos deletérios para a Justiça brasileira, tinha caráter “imprevisível e contraditório”, ausência de procedimentos de controle: “qualquer membro do Ministério Público pode abrir uma investigação em função de suas próprias convicções, com reduzidas possibilidades de ser impedido por uma autoridade superior”.
(Anteriormente, havia sido votada a famosa Lei da Ficha Limpa, é preciso acrescentar à reportagem.)
VII – O Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, criou a “força-tarefa” da “lava jato”, em seguida. Desde seu surgimento, o grupo atraiu a atenção da imprensa, narra o jornal.
“A orquestração das prisões e o ritmo da atuação do Ministério Público e de Moro transformaram a operação em uma verdadeira novela político-judicial sem precedentes”, afirmam Bourcier e Estrada na reportagem.
VIII – Já com a lei anticorrupção em vigor, a procuradora-adjunta do Departamento de Justiça americano, Leslie Caldwell, afirmou em palestra:
“A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que nós prestamos à comunidade internacional, mas sim uma medida de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses em questões de segurança nacional e o das nossas empresas, para que sejam competitivas globalmente.”
Leslie Backshies, chefe da unidade internacional do FBI e encarregada, a partir de 2014, de ajudar a “lava jato” no país, afirmou que “os agentes devem estar cientes de todas as ramificações políticas potenciais desses casos, de como casos de corrupção internacional podem ter efeitos importantes e influenciar as eleições e cenário econômico”.
Kenneth Blanco, então procurador-geral adjunto do DoJ, declarou que “Brasil e Estados Unidos trabalharam juntos para obter provas e construir negócios”. E diz: “É difícil imaginar uma cooperação tão intensa na história recente como a que ocorreu entre o DoJ e o Ministério Público brasileiro”.
O que mais preocupava os EUA, diz a reportagem, era a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde empreiteiras brasileiras começavam a expandir seus negócios (impulsionadas pelo plano de criação dos “campeões nacionais” patrocinado pelo BNDES.
O então embaixador americano diz que o projeto político brasileiro para a integração econômica da América do Sul suscita sérias preocupações no Departamento de Estado, que “considera o evolução da Odebrecht parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana”.
Um ex-membro do Departamento de Justiça, encarregado da relação com os latinos americanos, afirmou ao Le Monde que tiveram muito trabalho para “endireitar os rumos” das coisas devido à deterioração das relações entre Obama e Lula.
A tarefa ficou ainda mais difícil depois que Edward Snowden mostrou que a NSA (agência de segurança dos EUA) espionava a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras, o que esfriou ainda mais a relação entre Brasília e Washington.
IX – “Em 2015, os procuradores brasileiros, para dar mostras de boa vontade para com os norte-americanos, organizaram uma reunião secreta para colocá-los a par das investigações da “lava jato” no país. Cobraram um preço: parte do dinheiro recuperado pela aplicação do FCPA voltaria para o Brasil, especificamente para um fundo gerido pela própria “lava jato”.
X – O acordo de “colaboração” entre as autoridades norte-americanas e a Odebrecht, em 2016, previa o reconhecimento de atos de corrupção não apenas no Brasil, mas em outros países nos quais a empresa tivesse negócios.
Nas negociações, ressalta Le Monde, foi ordenado ao Citibank, que administrava o dinheiro da empresa nos EUA, que desse um prazo de 30 dias para encerrar as contas da Odebrecht, em caso de recusa do acordo: os valores depositados nessas contas seriam colocados em liquidação judicial. Isto é, falência, sublinha o Le Monde.
Reportagem memorável do Le Monde.
Tudo aconteceu em governos do campo popular, nas barbas do Ministério da Justiça.
Antes, em 1954, armou-se um complô para derrubar o presidente mais longevo da nossa história e até então o mais querido, sob acusações de corrupção, “mar de lama”; em 1964 deram o golpe para derrubar Jango sob as mesmas acusações, mais a de comunismo; agora, condenaram o presidente eleito e reeleito pelo povo brasileiro, e que havia eleito e reeleito sua sucessora, Dilma Roussef, o levaram à prisão e o impediram de se candidatar.
Resultado: foi eleito Bolsonaro. Em todos os três episódios os Estados Unidos alegaram estar ajudando o Brasil livrar-se de corrupção.
É o caso de se indagar: quando, na História, o Império preocupou-se em combater corrupção nas colônias?