O fantástico caso Suzy: todo mundo é santo só que ninguém presta

Por Paloma Franca Amorim

Ao invés de destilarmos a verdade de nosso ódio moral, poderíamos tentar qualificar o debate sobre pedofilia, regulamentação da mídia e cultura do estupro

A narrativa construída é sim tendenciosa, emocional, cheia de nuances que nos fazem ter empatia com as pessoas trans e travestis encarceradas. É sobre isso a matéria, tão elogiada na semana em que saiu, do Fantástico. É sobre condições de encarceramento e gênero. Não é sobre quão dolorosa deve ser a punição de uma pessoa se ela cometeu esse ou aquele crime.

Se existe um autor do erro, nesse caso, esse autor é a equipe técnica do Fantástico, que produziu a matéria, omitindo dados que talvez – em uma sociedade que julga as pessoas não pelo que fazem mas pelo que são como a nossa – pudessem ampliar o senso crítico dos espectadores.

É sempre nocivo para os grupos politicamente minoritários quando se associa a ação moralmente condenável a sua identidade racial, étnica, de gênero (ex. indígena que estupra mulheres, negro que é racista em fundação de direitos humanos, lésbicas que mandam matar a própria família), aparentemente uma condição de ser e estar no mundo, biológica ou não, admite apenas um comportamento – na maioria das vezes lido como promíscuo, criminoso, inadequado por operação de metonímia, isso é, a parte pelo todo.

Pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras são antes de tudo indivíduos e não expressam os valores de uma categoria geral como as minorias políticas. Isso é cultural, é uma forma de estigmatização. Por que pessoas que desenvolviam aids na década da caça às bruxas, anos 1980, eram chamadas aidéticas? Bem como os leprosos no século XVII? As doenças nomeiam o indivíduo para desumanizá-lo, esse mecanismo favorece a falsa sensação de manutenção da saúde e da segurança dos que não estão doentes e facilita a sua atitude de afastamento e condenação.

Podemos todos condenar Suzy por seus crimes, o debate é aberto e a livre expressão está aí para nos valermos dela, o que não podemos esquecer é que sua pena já foi determinada pelo Estado e que essa raiva toda tem um fundo emocional construído pela própria linguagem da matéria. Temos raiva de Suzy e perversamente de todas as demais pessoas trans (por tabela, afinal nunca estar no mundo de uma maneira não-normativa é ser um só), de Dráuzio, da Globo, porque foi criada uma noção de afeto superficial que manipulou nosso desejo, uma vez mais – afinal, teríamos tanta simpatia por uma pessoa transgênero, travesti, na rua? Ouviríamos essa pessoa? Ouvimos essa pessoa? Sério mesmo? Ou a gente só ouve quando se trata de uma autoridade trans que já publicou livros e fez mesas de debate que nossa consciência política diz ser importantes?

Ao invés de destilarmos a verdade de nosso ódio moral apoiando inclusive falas da direita mais narcísica e supremacista, poderíamos tentar qualificar o debate sobre pedofilia, regulamentação da mídia, cultura do estupro, espetacularização da opressão, existência transgênero, existência cisgênero, feminismo periférico, maternidade e terror. Cada coisa num lugar, com sobriedade e respeito. Não me parece uma coincidência que agora haja uma guerra opinativa entre mulheres trans e mulheres cis nas redes sociais que mostra as categorias mirins em que estamos inseridas quando o debate diz respeito, técnica e racionalmente, ao tema dos direitos humanos. O conflito é o programa, o objetivo, e caímos feito umas patas, porque todo mundo é santo só que ninguém presta.

Paloma Franca Amorim é escritora.