O Estado deve cumprir o que rege a Constituição

O artigo 209 da Constituição da República assegura que “o ensino é livre à iniciativa privada”, desde que cumpridas as normas gerais da educação nacional e mediante autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

É esta regulamentação do Estado como princípio que os opositores do Projeto de Lei 4.372/ 2012, que cria o Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação do Ensino Superior (Insaes), insistem deliberadamente em ignorar. É o que fez o presidente da Federação dos Estabelecimentos Particulares de Ensino da Região Sul, Ademar Batista Pereira, no artigo “A estatização da escola privada”, publicado no jornal “O Estado de S.Paulo”. A avaliação e supervisão do ensino superior é lei da educação nacional e, nesse sentido, todos que estão no sistema federal – instituições e cursos públicos e privados – devem ser avaliados e autorizados pelo Estado brasileiro. A educação é um direito e como tal deve ser assegurado com qualidade.

No referido artigo, foram elencadas diversas inverdades acerca do Insaes, que nós, como representantes dos trabalhadores nos estabelecimentos privados de ensino, sentimo-nos na obrigação de refutar. Ao mencionar o crescimento do número de alunos no ensino superior privado, o artigo ignora que grande parte das instituições de educação privada é sustentada hoje por dinheiro público, uma vez que seus estudantes possuem bolsas de programas como o ProUni e o Fies. O setor privado não vê ingerência do Estado ao receber recursos públicos, mas sim quando se trata de ser avaliado na garantia de uma educação de qualidade. Não há nada de estatização no Insaes; ao contrário, o que o PL apresenta é maior capacidade de garantia de qualidade, inclusive em instituições que vivem do dinheiro público.

Sobre a suposta educação de qualidade da escola privada, alardeada como “sonho de consumo da sociedade” – e aqui não podemos deixar de questionar qual modelo de qualidade está sendo abordado –, deixa-se de mencionar que os últimos ciclos avaliativos realizados demonstram que mais de 45% das instituições privadas de educação superior e mais de 55% dos cursos ofertados por elas tiram nota abaixo de 2 nas avaliações do MEC, o que acarreta visita in loco e assinatura de termo de compromisso a ser acompanhado pelo ministério, que abre supervisão nessas instituições. É claro que, dentro do sistema, existem instituições públicas que precisam melhorar sua qualidade bem como instituições privadas que se destacam. No entanto, as avaliações demonstram exatamente o contrário do que afirmam os opositores do Insaes, que defendem que o setor privado é o que mais possui qualidade. Não é isso que os dados revelam.

Para se ter mais uma ideia do equívoco cometido ao se propor uma supremacia de “qualidade” do ensino privado sobre o público, do total de 6.083 cursos avaliados (da rede federal e privada) pelo Conceito Preliminar de Cursos (CPC), divulgado no mês passado pelo MEC levando em consideração os resultados do Enade, 672 tiveram desempenho insatisfatório em 2011, sendo 124 instituições federais e 548 particulares – quatro vezes mais. Cabe ressaltar que estes ciclos avaliativos estabeleceram o total acima para serem avaliados em 2011, mas que, atualmente, temos mais de 50 mil cursos superiores no Brasil, 278 instituições públicas e 2.377 instituições privadas.

Pelos dados das últimas avaliações já podemos ver o tamanho da responsabilidade do MEC, que precisa cumprir seu papel de providenciar as visitas in loco e acompanhar os processos em andamento vindo dos ciclos avaliativos e dos pedidos de credenciamento e autorização de cursos. Grande parte dessas instituições não tem cumprido o que é definido nos termos de compromisso assinados, ocasionando outras penalidades, como, por exemplo, seu descredenciamento e a proibição de vestibular nos cursos mal avaliados. Só em dezembro passado, o MEC anunciou restrição ao ingresso de estudantes em 185 instituições mal avaliadas, das quais apenas seis são federais. As outras 179 são privadas.

Os detratores do Insaes alegam, em sua visão deturpada dos fatos, que o projeto de lei em tramitação na Câmara sujeita a iniciativa privada a uma suposta “ameaça” e a um “grande risco à democracia” e que seria incompatível com o Estado Democrático de Direito. Se a rede privada, que representa a maioria das instituições de educação superior, tivesse melhor qualidade, talvez não fosse necessária a criação do Insaes, como prevê o PL 4.372/2012. O Insaes está sendo proposto exatamente porque é necessário que o MEC tenha maiores condições de cumprir o papel de avaliação e supervisão, autorização e credenciamento.

Incompatível com o Estado Democrático de Direito, na verdade, é privar os cidadãos brasileiros das garantias fundamentais baseadas no princípio da dignidade humana, entre os quais se destaca o acesso a uma educação de qualidade. Grande risco à democracia brasileira representa, na verdade, a formação precária de estudantes em cursos e instituições que apresentam nota abaixo de 2 nas avaliações do MEC e os danos pedagógicos e trabalhistas trazidos pela mercantilização, financeirização e desnacionalização da educação superior, com a lucratividade e o “ótimo desempenho” das ações das Instituições de Ensino Superior (IES) na Bolsa de Valores sendo exaltados diariamente na mídia, com a proliferação de escolas-shoppings, sem qualquer preocupação com um projeto de desenvolvimento para o país e com a garantia de educação superior de qualidade, democrática, pública e gratuita.

É preciso também que se esclareça que muitas instituições brasileiras de educação superior têm sido incorporadas a grupos financeiros nacionais e internacionais, cujo objetivo é investir em ações que no mercado financeiro se tornem atrativas. Para que esse intento seja cumprido, essas instituições, depois de adquiridas, passam por mudanças
internas muito significativas, cuja finalidade é maximizar os rendimento e diminuir os custos a um patamar mínimo.
Assim, fazem uma verdadeira mudança no projeto pedagógico dos cursos que já passaram por avaliação com o projeto pedagógico anterior, demitem todos os doutores e mestres e padronizam todo o material pedagógico, simplificando as informações e pasteurizando o conhecimento, rebaixando a formação dos profissionais e desvalorizando a produção de saber, uma vez que essas instituições primam pelo oferecimento de cursos de baixo investimento. Além disso, mudam a mantença da instituição sem que o MEC seja informado do fato.

O artigo 3º do PL em debate determina que tais fusões se deem mediante aprovação prévia do MEC. O que os opositores do Insaes chamam de ingerência e de estatização nada mais é do que impedir que essas mudanças sejam feitas sem o conhecimento do Ministério, que tem como prerrogativa a autorização e credenciamento das instituições e cursos.

Nós, que representamos os trabalhadores de educação que atuam no setor privado, conhecemos por dentro essa realidade e sabemos que as instituições privadas na educação superior, além de serem, como já mencionado, as que tiram as notas mais baixas nas avaliações institucionais e de cursos, não têm nada de democrático. Uma grande maioria destas instituições não permite a participação de professores e estudantes na elaboração do projeto pedagógico e nem a livre organização, seja estudantil ou de trabalhadores, garantida pela Constituição brasileira. Muitas sequer respeitam os direitos trabalhistas, não pagam o que a lei determina aos seus profissionais e possuem débitos com a receita e com a seguridade social.

O PL tão criticado, em seu artigo 3º parágrafo único, exige que, para credenciamento e recredenciamento, as instituições de educação superior estejam em regularidade perante as fazendas federal, estadual e municipal, a seguridade social, o fundo de garantia e a justiça do trabalho. Talvez por este motivo o Sr. Ademar Batista Pereira esteja tão indignado com o Insaes. Mas este não deve ser um princípio a ser cobrado de qualquer empresa, principalmente as que atuam no campo dos diretos como é a educação?

Ao contrário do considerado no artigo “A estatização da escola privada”, a criação do Insaes não só é pertinente, necessária e urgente como também se coaduna com a esperada regulamentação da educação privada, com a reforma universitária e com o novo Plano Nacional de Educação (PNE).


Madalena Guasco Peixoto é coordenadora-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). Artigo originalmente publicado no site da Contee.

 

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