O baixo clero no poder



Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Reproduzido dos Jornalistas Livres

Dezoito de junho de 2020, o dia em que Fabrício Queiroz, o personagem mais folclórico da crônica política brasileira contemporânea, foi preso, alimentando toda a sorte de memes e piadinhas. O brasileiro tem capacidade única de gracejar no caos. Deve ser uma qualidade.

Queiroz é personagem social típico do Rio de Janeiro. Se Moacyr Luz estava certo quando disse que o Rio de Janeiro é a cara do Brasil, o retrato 3 X 4 que sintetiza o corpo nacional, poderíamos dizer que Queiroz é também um tipo ideal brasileiro que, diferente do weberiano, existe em carne e osso.

Quem foi criado no subúrbio carioca, na Baixada Fluminense ou ali por São Gonçalo e Niterói, já conheceu pelo menos um Queiroz na vida. PM corrupto, violento, envolvido com milícias. Mas também carismático, com aparência de ser gente boa. Bom de churrasco, corrente de São Jorge no pescoço, safo na resenha futebolística, com ginga pra sacolejar bonitinho ao som de uma boa roda de samba. Sorriso largo. É perfeitamente possível simpatizar com Queiroz.

Bandido de baixo clero, rouba no esqueminha, no rolo, no varejo. O Brasil, hoje, é governado por uma quadrilha de bandidos de baixo clero. Bolsonaro sempre foi corrupto, mas como era ladrão miúdo, passou batido pelo tribunal moral lava-jatista que pauta a política brasileira desde 2014. Bolsonaro roubava na rachadinha, superfaturando nota do posto de gasolina. Qual delegado da PF, qual procurador do MP tem interesse em investigar ladrão de galinha? Não dá capa de jornal, não dá mídia.

Foi justamente essa mediocridade que permitiu a Bolsonaro performar o honesto no processo de radicalização da crise democrática. Até hoje, há quem considere os crimes da família Bolsonaro como sendo de menor potencial ofensivo. O brasileiro médio, cidadão de bem, não tolera o crime de colarinho branco, mas lida bem com o esqueminha, com o rolo. Uma questão de identidade mesmo. Bolsonaro e Queiroz representam muito bem o brasileiro médio.

Queiroz ficou um ano encarcerado em Atibaia, norte de São Paulo. Não estava escondido não. Estava preso mesmo, sob controle. Era isso ou a vala. Mandar Queiroz para o plano espiritual não seria tão fácil. O cara era muito conhecido, não podia amanhecer morto assim, sem mais nem menos. Para dar fim em Queiroz teria que dar fim também na esposa e nas filhas. Operação complexa. Não excluo também o fato de os Bolsonaro gostarem mesmo de Queiroz, de existir vínculo afetivo sincero entre eles. Os brutos também amam.

Queiroz foi preso numa casa onde tinha um quadro velho do AI-5 e um bonequinho de Tony Montana, personagem vivido por Al Pacino em filme de máfia. O covil de Queiroz renderia um ensaio de interpretação do Brasil.

Quem delatou Queiroz foi a filha do Olavo de Carvalho!!!! A filha do guru do bolsonarismo, rompida com o pai, delatou Queiroz. Que roteirista é esse?

Queiroz foi encontrado na casa de Frederick Waseff, advogado da família Bolsonaro. Na década de 1990, Wassef era membro de seita satanista, chegou a ser acusado de ter matado criança num ritual macabro em Guaratuba, no Paraná. O cara é advogado da família do presidente da República!! Desse aí não tem como gostar não. Não deve ter sido fácil para o Queiroz conviver um ano com esse sujeito barra pesada.

A prisão de Queiroz sugere o enfraquecimento político do presidente Jair Bolsonaro. Já há mais de um ano que o esquema das rachadinhas coordenado por Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro é de conhecimento público. Durante esse tempo todo, a Justiça fez vista grossa, deixando o caso Queiroz em banho maria. Agora, exatamente quando as instituições da República dobram a aposta no confronto ao governo, Queiroz foi preso.

Queiroz, seus filhos, sua esposa, os ex-funcionários de Flávio Bolsonaro nos tempos da ALERJ. Essas pontas não ficarão juntas por muito tempo. Em breve, alguém dará com a língua nos dentes. Flavio não é exceção, não é a ovelha negra da família. Flávio não inventou o esquema. Aprendeu com o pai. As investigações chegarão no gabinete do próprio Jair Bolsonaro. É tão óbvio quanto a existência do sol.

Os generais palacianos sabem perfeitamente disso. Diferente do que vinha acontecendo já há algum tempo, eles não saíram em defesa do presidente Bolsonaro. Simplesmente silenciaram, num gesto que sugere constrangimento e inclinação ao desembarque. Ao ingressar no governo de Bolsonaro, as Forças Armadas se envolveram na pior encrenca de sua história. Sairão sujas dessa aventura, contaminadas pela corrupção rasteira do baixo clero bolsonarista, com mais de 200 mil mortos da covi1-19 nas costas. O Exército brasileiro é responsável direto pelo Ministério da Saúde. Em algum momento, essas pessoas serão responsabilizadas, moral e penalmente. Para a reputação dos militares, Bolsonaro será mais danoso do que foi a ditadura.

A ditadura deixou algum legado de desenvolvimento e infraestrutura. Bolsonaro só deixará cinzas, corpos e escândalos de corrupção.

O caso Queiroz praticamente sepulta a possibilidade de um autogolpe apoiado pelas Forças Armadas. É difícil imaginar que um número grande de oficiais da ativa apoiariam um golpe sem projeto, sem nenhum fundamento ideológico. Seria um golpe tão somente pretoriano com o único objetivo de salvar os parentes e amigos de Bolsonaro das garras da justiça.

Por outro lado, é prudente não dar Inês como morta antes da hora. O golpe militar clássico apoiado pelas Forças Armadas não é a única carta que Bolsonaro tem na manga. Há também o projeto do golpe miliciano sustentado pelas PMs estaduais. Esse projeto está em curso. Enquanto escrevo este texto, enquanto o leitor me lê, há gente nos batalhões das PMs tentando doutrinar a tropa.

A PM fluminense já é bolsonarista. São Paulo começa a perder o controle sobre a sua corporação. É difícil saber como está a situação nos outros estados. Fato é que a Presidência da República, hoje, é o único trunfo de Bolsonaro, é questão de sobrevivência. O tom ameno dos últimos dias não é uma trégua, tampouco intensão sincera de reconciliação com os outros poderes. É estratégia para ganhar tempo visando a mobilização e a formação ideológica das PMs estaduais.

Assim que as condições políticas ficarem plenamente satisfatórias, as instituições da República precisam agir, de forma rápida e eficiente. O caso Queiroz tem potencial para ser a bala de prata já tantas vezes anunciada. Carece de saber usar.

Seria irônico se Bolsonaro caísse por causa de Queiroz, bandido de baixo clero. Seria coerente também. São feitos do mesmo barro.