Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Por Valdete Souto Severo (Foto: Douglas Magno/AFP)

Todo esse desajuste que nos assusta em níveis tão diferentes não é acaso. O Rio Grande do Sul ferve. Minas Gerais desmorona. A Bahia submerge. A covid infectará metade da Europa em poucas semanas. No Brasil, hospitais e postos de saúde voltam a lotar. Já está cansativo repetir a relação disso com o desmatamento acelerado da Amazônia, com a poluição dos rios, a emissão de gases tóxicos, a produção de lixo, de exclusão e de miséria. Sugiro a leitura do livro Banzeiro Òkòtó, da Eliane Brum. Está tudo ali. Cada capítulo é um soco no estômago, um desassossego, um verdadeiro banzeiro. 

O resultado é a impossibilidade de seguir fingindo que tudo está bem. 

Estamos nessa situação porque nos organizamos sob a lógica da troca de dinheiro por trabalho e reduzimos tudo, inclusive nossas florestas, à condição de mercadoria. Para a maioria de nós, trabalhar não é escolha e sobra quase nada de tempo para todo resto.

Nossa comida está envenenada, nossa água está contaminada. Pode parecer estranho, mas eleger pessoas mentalmente perturbadas e terraplanistas diante de uma realidade como essa até que faz algum sentido. Quando tudo parece estar perdido, o que resta é um agora distópico em que as satisfações imediatas valem mais do que a preservação do futuro. Afinal, não há futuro. Em um tal cenário, as propostas de construção de uma sociedade fraterna e solidária, sem miséria e com a preservação da dignidade dos seres humanos e não humanos, que aparece no texto da Constituição de 1988, revelam-se inatingíveis. De que vale tanto esforço para alterar uma sociedade que se autodestruirá nas próximas décadas? Se não há futuro, não há nada a fazer, senão esgotar o que ainda resta. 

No livro que referi, Eliane nos provoca a desistir da esperança, mas o efeito de sua provocação é o exato contrário daquilo que elegeu quem hoje atua politicamente para promover a morte. Trata-se de deixar a ilusão de lado, pois ela tem nos conduzido ao precipício.

Pensar que não há futuro não deve ser razão para o desespero, mas também não serve ter esperança se nada em nossa realidade nos autoriza a acreditar que mudaremos a forma como estamos nos destruindo. A urgência da superação de uma sociabilidade que esgota seres humanos e não humanos não se dará com esperança. Também não ocorrerá com o medo, esse outro afeto tão mobilizado por quem detém poder, especialmente em ano de eleição. Abrir mão da esperança não é desistir, afirma Eliane. É reconhecer que nenhuma eleição nos salvará, especialmente se as escolhas disponíveis estão alinhadas – todas elas – com a destruição ambiental e a espoliação de quem vive do trabalho, ou seja, com a insistência em um sistema autofágico. O que ela propõe, portanto, é a renúncia a uma esperança que implique viver como se tudo fosse acabar bem. É acolher o desamparo, para redescobrir como agir coletivamente. Isso não exclui a necessária luta pela superação definitiva de governos que neguem a ciência, promovam violência e apostem despudoradamente na destruição do planeta. Mas implica reconhecer que dentro de uma lógica capitalista, com maior ou menor violência e intensidade, a destruição tem sido o único caminho trilhado. No Brasil, essa verdade nos acompanha desde que o primeiro navio europeu aqui aportou.

A consciência de que não há futuro para quem destrói a vida convoca, portanto, a uma postura de reencontro com o que realmente importa. Outra forma de convívio, que não é individual e que não precisa ser inventada, pois já existem experiências capazes de adiar o fim do mundo, como diz Krenak. Precisamos recuperá-las. Isso implica esforço, especialmente para perceber que o buraco é bem mais em cima, na camada de ozônio, que derrete geleiras, destrói plantações e provoca câncer. A mudança precisa ser, portanto, muito mais radical. E depende de compreendermos a interrelação de coisas aparentemente desconectadas, sob pena de seguirmos militando pela preservação do ambiente e, ao mesmo tempo, ratificando ou exaltando condutas que produzem destruição.

Esse é o meu ponto aqui. Alterar radicalmente a forma como nos relacionamos, para tentar reverter um quadro que já se revela assustador, mesmo para quem insiste em seguir não olhando para cima, como provoca o título do recente filme dirigido por Adam McKay, depende de compreendermos a interligação de atitudes que corroboram para a situação em que hoje estamos. E então enfrentá-las.

Dois exemplos podem tornar mais claro o raciocínio.

Os elogios à carta de Barra Torres, em resposta a Bolsonaro, reforçam o negacionismo destrutivo. Foi Barra Torres quem, à frente da ANVISA, autorizou o uso dos estoques do agrotóxico paraquete, associado à doença de mal de parkinson entre agricultoras e agricultores, de aplicação banida em razão do seu alto grau de lesividade. Todos os agrotóxicos, para serem aprovados, passam pela análise técnica da ANVISA. Apenas em 2018, foram 450 novos agrotóxicos aprovados para o uso no país. Em 2019, outros 474. Em 2020, 493. Em 2021, mais 550. Uma carta, pessoal e apelativa, de alguém aliado a um governo que destroi seres humanos e não humanos, não pode ser comemorada. Pontuar divergências e seguir alinhado a mesma política predatória não promoverá mudança alguma, muito menos essa que aqui estou propondo.

O recente editorial do Estadão, criticado por Jorge Luiz Souto Maior é outro exemplo. Não adianta falar em favor das vacinas ou criticar pontualmente um governo violento e negacionista, mas ao mesmo tempo produzir conteúdo mentiroso sobre uma legislação que tornou bem pior a vida de quem vive do trabalho. No texto, insiste-se em separar a “reforma” da atual gestão de governo e cita-se, de forma reiterada, o fim do imposto sindical como um avanço. Não foi avanço, nem foi – de longe – a alteração mais lesiva promovida por essa legislação. Seu conteúdo inclui jornada de 12 horas sem intervalo; supressão de direitos por acordo individual; facilitação (ainda maior) da despedida. Trata-se de uma lei que, na redação aprovada pelo governo Temer, estabelecia que as trabalhadoras gestantes e lactantes permaneceriam atuando em ambientes nocivos à saúde, a menos que apresentassem atestado médico. E essa é só uma pequena amostra. Houve muitas outras alterações que suprimiram direitos e comprometeram a possibilidade de acesso à Justiça do Trabalho. Um dos principais personagens da “reforma”, o então deputado Rogério Marinho, é hoje ministro do Desenvolvimento Regional do governo Bolsonaro. 

E o que isso tem a ver com a destruição ambiental? Tudo. 

Quem trabalha 12 horas para receber pouco mais de mil reais, sabendo que poderá ser despedido a qualquer momento sem motivação alguma, luta diariamente para seguir vivendo. Não tem condições materiais e psicológicas para agir politicamente, não tem como alimentar-se com decência, não consegue se proteger adequadamente de situações que comprometam sua saúde. O rebaixamento das condições de vida da classe trabalhadora implica redução de consumo, inclusive de remédios e de alimentação saudável. A dificuldade de acesso ao Judiciário trabalhista estimula o desrespeito à ordem jurídica. Ganha quem explora de forma predatória; perde quem trabalha e quem emprega e respeita direitos sociais.

Por isso, defender essa série de violações que pioram a vida da maioria do povo é aliar-se à mesma lógica destrutiva. Como bem sabemos, são as maiores empresas dos diferentes setores, com especial participação do agronegócio, as que mais produzem lixo tóxico, destroem rios, desmatam, e as que mais lucram com a supressão de direitos sociais.

O esgotamento que faz a terra arder, que mata e compromete nossa possibilidade de futuro, é fundado e naturalizado em uma ideologia sustentada pelo Estado através de suas instituições. Conta com muitas pessoas, em diferentes cargos de poder, para seguir produzindo seus efeitos nefastos. Daí a urgência que nos convoca a atuar. Este ano tem eleição. Ao contrário do que pode parecer, não defendo que devamos desistir. A disputa de discurso, especialmente quando endereçada a promover debate, é essencial. O resultado deve ser o melhor possível, mas a questão é que nada melhorará no dia seguinte.

“O futuro não é mais como era antigamente”. Não tenhamos esperança. Façamos a luta, especialmente pela compreensão da estreita ligação das diferentes práticas e discursos que fazem morrer o que vive em nós e em torno de nós. Se quisermos realmente escolher a vida, o caminho será bem mais longo e dolorido, mas talvez aí haja realmente algum futuro. Para concluir como comecei, citando trecho da música Índios, da Legião Urbana, renunciar à esperança é insistir na saudade de tudo que ainda não vimos.

Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.