Por Valdete Souto Severo
A “reforma” administrativa propõe uma mudança profunda na carreira das atuais servidoras e servidores públicos e na forma de organização do Estado. Atinge quem pretende ingressar no serviço público, quem já presta esse serviço, os aposentados e toda a coletividade. Afinal, tudo o que afeta o serviço público, nos afeta diretamente. Atinge a saúde pública, a educação, as estratégias para moradia popular, a qualidade com que a distribuição de energia, água e comunicação será realizada, entre tantas outras atividades que constituem a razão pela qual o Estado existe.
A proposta vem dentro de um conjunto de alterações feitas no que compreendemos como Administração Pública e serviço público desde a edição da Constituição de 1988. Já em 1998, outra emenda acabou com o Regime Jurídico Único, permitindo que o administrador público contrate sob a forma da CLT, algo que a PEC 32 aprofunda significativamente. Ao contrário do que podemos pensar, isso não contribui para a eficiência do serviço. Simplesmente dá ao administrador a possibilidade de burlar a norma constitucional de imparcialidade.
As pessoas que realizam serviço público devem ser tecnicamente habilitadas e não devem ter compromissos de ordem político-partidária ou econômica, capaz de interferir em seu trabalho. Daí porque a Constituição garante segurança no trabalho (estabilidade), seleção criteriosa (por concurso público) e impessoalidade na escolha. A possibilidade de contratar pela CLT, por si só, não elimina a necessidade de serviço público, nem a estabilidade. Quando alinhada com as formas de contratação temporária ou emergencial, acaba burlando esses critérios constitucionais. Afeta a ideia de impessoalidade, especialmente porque consolidou-se o entendimento de que empregados públicos, exatamente porque sujeitos ao regime da CLT, não teriam garantia de proteção contra a despedida. E isso, apesar do que diz a Constituição (artigo 7º, I) e da existência de leis específicas, referindo a necessidade de motivação para a dispensa, a exemplo da Lei 9962/2000. É que as decisões judiciais têm entendido que cabe despedida imotivada de empregado público, o que permite ao administrador despedir até que seja chamado alguém de sua escolha.
A PEC 32 se alinha a todo o estímulo à terceirização, que inicia na década de 1960, com o Decreto 200, e acaba estimulada pela própria Justiça do Trabalho, através da súmula 331, de 1993. Afinal, terceirizar é também uma forma de burlar a impessoalidade e de comprometer a eficiência do serviço público, destruindo, ao mesmo tempo, a noção de carreira pública. É claro, portanto, o boicote ao modelo de Estado pensado na Constituição, através da tríade terceirização, privatização e alteração das regras para a prestação do serviço público.
Esse projeto torna-se mais nítido, quando percebemos que o governo operou um profundo desmanche na legislação trabalhista (especialmente com as leis 13.429 e 13.467 de 2017) e, agora, busca tornar praticamente todos os servidores públicos “celetistas”. Algo que sob a perspectiva do discurso oficial é contraditório. Afinal, são quase diárias as manifestações contra a CLT. Ainda assim, é esse o regime que se pretende impor aos servidores. Tal pretensão só é compreendida se entendermos do que realmente trata a PEC 32: impedir que o Estado cumpra sua função constitucional, no que diz com a realização dos direitos sociais.
A PEC 32, em sua forma original, acabava com a estabilidade para os novos servidores, o que pode a primeira vista parecer bom, afinal ouvimos sempre que a estabilidade gera preguiça, descompromisso com o trabalho. Nada mais contrário à realidade. Servidoras e servidores trabalham muito. Na saúde, estão sujeitos ao regime inconstitucional de 12 horas e por vezes duplicam o turno. As professoras e professores, que se dedicam à educação em condições adversas, com baixos salários, trabalham em casa, de forma não remunerada, preparando aulas, corrigindo trabalhos.
A realidade é que sem essas trabalhadoras e trabalhadores não há hospital público, escolas públicas; não há creche pública, centro de atenção psicossocial, centros de referência em assistência social, INSS, Judiciário, distribuição de água e canalização de esgoto lá onde não interessa ao capital privado investir. Afinal, o Estado não é uma empresa, não atua para obter lucro, mas para que a maioria possível de pessoas tenha acesso a condições materiais sem as quais não há como viver.
É verdade que o substitutivo apresentado mantém a estabilidade, mas estimula a contratação a prazo, hipótese em que não há essa garantia de manutenção do trabalho, pois a própria contratação já define o tempo em que o serviço público será prestado. O fim da estabilidade, mesmo que através do artifício da contratação temporária, não implica, como é fácil perceber, maior empenho ou eficiência. Ao contrário, fará com que essas mulheres e homens que prestam serviço público, vivam a mesma incerteza das trabalhadoras e trabalhadores do setor privado. Novamente, podemos ser tentados a pensar que isso é bom, afinal, porque só no serviço público há esse “privilégio”? Mas a lógica da redução da proteção social para quem ainda tem um mínimo de segurança e previsibilidade no trabalho é também equivocada, inclusive sob a perspectiva social. Trata-se de um discurso construído para dividir, que atinge a todas as pessoas, inclusive em sua condição de consumidoras e cidadãs.
Segurança é a grande promessa da modernidade. Ter a segurança do trabalho, em uma sociedade na qual sem salário não se tem acesso sequer a alimentos, é o direito mais elementar de todos. Eis porque o artigo 7º da Constituição inaugura a lista de direitos trabalhistas com a proteção contra a despedida, direito para o qual vergonhosamente negamos eficácia até hoje. Portanto, em lugar de questionar a estabilidade no serviço público, devíamos estar lutando para que esse direito fosse reconhecido também aos trabalhadores e trabalhadoras da iniciativa privada. Não se trata apenas de segurança social que interessa a quem trabalha, que evita sofrimento e, portanto, adoecimento psíquico. Estabilidade é a garantia da possibilidade de consumo, especialmente a médio ou longo prazo. Interessa, portanto, ao próprio sistema.
De qualquer modo, o substitutivo, em vez de avançar, torna-se mais perigoso. Manter a estabilidade e viabilizar a contratação temporária implicará quebra constante na continuidade de serviços, para os quais o envolvimento, o conhecimento técnico e a qualificação são essenciais. Esses trabalhadores serão descartados após um período (de até dez anos) e dificilmente encontrarão recolocação no “mercado”, pois sob a lógica da competição e da exclusão constante, estarão certamente em flagrante defasagem em relação aos demais profissionais de sua área de atuação.
A estabilidade, assim como a certeza da contratação a prazo indeterminado, essência da noção de carreira pública, é também elemento capaz de dificultar/ combater a corrupção. Garante a independência e mesmo a possibilidade de denúncias como aquela promovida por Luiz Ricardo Miranda à CPI. Se Luiz Ricardo não fosse estável, talvez tivesse calado. Esse direito interessa à sociedade, na medida em que viabiliza uma atuação técnica, segura e protegida contra pressões internas ou externas. Ou seja, garante um serviço público de qualidade para todos nós.
A possibilidade de reduzir jornada e salário, esse absurdo já presente no ordenamento jurídico (lei 14.020) para o setor privado, é outro dos aspectos perversos da PEC 32. A irredutibilidade de salário não é garantia fundamental por acaso. O salário é a condição para sobreviver e reduzi-lo significa impor a quem vive do trabalho a perda de condição material de existência. No limite, implica privações, dívidas. E tudo isso em uma realidade na qual as servidoras e servidores estão há anos sem reposição salarial.
A proposta ainda limita ou exclui vários direitos fundamentais. Ora, quanto mais frágeis forem as servidoras e servidores, mais suscetível às forças econômicas e político-partidárias será o Estado. Quanto mais precário for o serviço público, mais excluídas das possibilidades de vida digna estarão as pessoas que dele dependem para ter acesso à saúde, educação, moradia, justiça. E quanto mais excluídas elas estiverem, mais frágil será a sociedade, maiores serão os problemas do nosso cotidiano. Eis porque a PEC 32 constitui um grave problema para a nossa soberania, para um projeto de nação e de sociabilidade saudável, que inclua em vez de produzir miséria e exclusão.
Não há substitutivo que dê conta. Alterar palavras ou minimizar alguns de seus tantos danos não irá alterar o caráter nocivo de mais essa proposta de descostura constitucional.
É preciso dizer não à PEC 32!
Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora.