Marx e a questão judaica

Abençoado por Deus e financiado em especial pelos Estados Unidos, Israel continua a cometer patifarias. Seu primeiro-ministro, Ehud Olmert, disse que sabia que mataria civis palestinos na ofensiva em Gaza. ”Quando você vence, você automaticamente fere mais pessoas do que se fere. E nós não queríamos perder. O que você queria, que centenas de nossos soldados morressem? A alternativa era essa”, disse. Israel é um Estado racista, que se arvora embasado em desígnios divinos para com um povo eleito, o povo judeu. A questão judaica foi tratada num texto juvenil de Karl Marx, quando ele ainda começava a elaborar sua concepção de mundo materialista dialética. Publicado quando ele tinha 26 anos, é um trabalho que merece reflexão.

Sobre a questão judaica foi escrito em 1843 e apareceu nos Anais Franco-Alemães, revista cujo primeiro e único número foi publicado na França, em março de 1844. Bruno Bauer, com quem Marx tinha amizade, publicou no ano anterior dois artigos sobre a questão judaica. O artigo dos Anais os aborda criticamente e Marx vai expondo seu próprio ponto de vista. O assunto trazia também interesse pessoal ao autor, pois seu pai teve de se converter ao protestantismo em função da discriminação aos judeus. ”Bauer coloca, em termos novos, o problema da emancipação dos judeus, depois de nos brindar com a crítica das formulações e soluções anteriores do problema. … E o resultado, resumido, é o seguinte: Antes de poder emancipar os outros, precisamos emancipar-nos”, registra o artigo.

Marx se queixa de que Bauer exige ”que o judeu abandone o judaísmo e que o homem em geral abandone a religião, para ser emancipado como cidadão. E, por outro lado, considera a abolição política da religião como abolição da religião em geral. O Estado que pressupõe a religião não é um verdadeiro Estado, um Estado real”.  Para Marx, nesta visão ”manifesta-se claramente o caráter unilateral da formulação da questão judaica”, pois é necessário indagar-se ”de que espécie de emancipação se trata; quais as condições implícitas da emancipação que se postula”.

Referindo as discrepâncias entre cristãos e judeus, o jovem autor se pergunta ”como se torna impossível uma antítese religiosa?”, e responde: ”Abolindo a religião. Tão logo o judeu e o cristão reconheçam que suas respectivas religiões nada mais são do que fases diferentes do desenvolvimento do espírito humano, diferentes peles de serpente com que cambiou a história, sendo o homem a serpente que muda de pele em cada uma destas fases, já não se enfrentarão mais num plano religioso, mas somente no plano crítico, científico, num plano humano. A ciência será, então, sua unidade. E, no plano científico, a própria ciência se encarrega de resolver as antíteses”.

O jovem filósofo já argumenta, com razão: ”A emancipação política do judeu, do cristão e do homem religioso em geral é a emancipação do Estado do judaísmo, do cristianismo e, em geral, da religião”. Consequente com isto, conclui seu artigo, onde realiza também um exame crítico das Declarações do Direito do Homem de 1791 e de 1793, afirmando: ”A emancipação dos judeus é, em última análise, a emancipação da humanidade do judaísmo”.

Os artigos de Bruno Bauer sobre a questão judaica voltarão a ser abordado no livro A sagrada família, escrito por Marx e Engels de setembro a novembro de 1844. Marx se refere ao artigo publicado nos Anais: ”O erro fundamental do texto” (de Bauer), ”a confusão entre a ‘emancipação humana’ e a ‘política’ foram descobertos”. Repreende: ”O senhor Bauer nem sequer suspeita, portanto, que o judaísmo real, secular e, portanto, também o judaísmo religioso é engendrado constantemente pela vida burguesa atual e encontra sua culminação no sistema monetário.”

Em contraposição, Marx demonstrou no seu artigo ”que o judaísmo se conservou e se desenvolveu através da História, em e com a História” e esse desenvolvimento tem de ser descoberto ”pelo olhar do homem mundano, uma vez que não se encontra na teoria religiosa, mas apenas na prática comercial e industrial.” E reafirma que ”a emancipação dos judeus para a condições de homens, ou a emancipação humana do judaísmo” é uma ”tarefa prática geral do mundo de hoje, que é um mundo judaico até a raiz”.

Em A sagrada família, o autor faz questão de reafirmar que ”assim como o Estado se emancipa da religião ao emancipar-se da religião do Estado, mesmo a religião ficando confinada a si mesma no seio da sociedade burguesa, assim também o indivíduo se emancipa politicamente da religião ao comportar-se em relação a ela não mais como se ela fosse um assunto público, mas sim como se fosse um assunto privado”.

Tendo como referência próxima as Declarações dos Direitos Humanos do final do século XVII, Marx registra que ”os direitos humanos não liberam o homem da religião, mas apenas lhe outorgam a liberdade religiosa, não o liberam da propriedade, mas apenas lhe conferem a liberdade da propriedade, não o liberam da sujeira do lucro, mas, muito antes, lhe outorgam a liberdade para lucrar”.

Nota-se, nesses textos, que em Marx ainda prevalece uma crítica repleta de referências morais em relação aos assuntos econômicos e sociais e uma visão de Estado influenciada pela idéia de Friedrich Hegel de que o Estado deve ser a encarnação da razão e o Estado só será racional quando, confundindo-se com a sociedade civil, for o Estado para todos os homens. Sua ruptura com esta concepção será marcada pela elaboração de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, no próprio ano de 1843, quando escreveu Sobre a questão judaica. Ainda não chegará, contudo, à visão do Estado de classe mas, em 1859, analisando este período, dirá que estava sendo levado ”à conclusão de que as relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podiam ser compreendidas por si mesmas, nem pela pretendida evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas relações materiais da vida…”

Quanto à economia, só em 1859, quando, em 1º. de junho, publica Contribuição para a Crítica da Economia Política, Marx vai fazer uma exposição sistemática de sua teoria do valor e do dinheiro, já sem baseá-la em condenações morais da ”sujeira do lucro”. No prefácio desta obra, apresenta sua concepção materialista da história, quando considera: ”O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é pelo contrário o seu ser social que determina a sua consciência”.

Numa carta de 30 de novembro de 1842 a Arnold Ruge, que com ele editou os Anais , Marx critica os integrantes do grupo Die Freien ( Os Libertos), integrado por Bruno Bauer e outros: ”Convidei-os a não se contentarem com vagos raciocínios, frases pomposas, a não se mostrarem demasiado complacentes para consigo próprios, a interessarem-se por analisar exatamente as situações concretas e a demonstrarem conhecimentos preciosos”. Sobre a questão judaica busca esse caminho de análise, como fica claro ao chamar a atenção para o fato de o judaísmo ser fruto do desenvolvimento histórico (e não de uma revelação ou opção divina) e de que é através da história que a humanidade vai adquirindo sua consciência. Valiosa também sua indicação de que a religião deve ser enfrentada no campo científico e não no estatal.

O Estado de Israel, o Estado cristão ou o Estado islâmico resistiriam a essa abordagem? Não é por acaso que poucos buscam no marxismo a base para suas análises das crises e dos conflitos do mundo atual. Interesses de classe de analistas e analisados ficariam evidenciados? é assim a ciência.

Carlos Pompe é jornalista

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