Marina Silva e a fronteira agrícola

É preciso entender a configuração de fundo da concentração dos conflitos ambientais brasileiros na região amazônica. Ela está ligada à opção brasileira pelo agronegócio sem levar em conta a urgência de uma reforma na estrutura fundiária do país. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) o Brasil será o maior país agrícola do mundo em dez anos. Pelos indicadores que o setor vem apresentando, tudo indica que estamos de fato seguindo por este caminho.

A produção nacional encerrou o período de 2003 a 2007 com algo próximo a 130 milhões de toneladas de grãos (um crescimento de 27% em relação a 2001/2002), movimentando 35% do Produto Interno Bruto (PIB). Esses e outros resultados nos colocam entre os líderes mundiais na produção de soja, milho, açúcar, café, carne bovina e de frango. O problema é que esse importante setor da economia tem sido uma continuidade do sistema patrimonialista que vem da colônia.

Negócio regulado pelo mercado mundial

Sob o comando de dirigentes públicos que incorporam os desígnios oligárquicos, o Estado brasileiro, historicamente ligado a esse setor, funcionou, na maior parte do tempo, como continuidade de interesses particulares. Não é exagero dizer que o Brasil produz e exporta a comida que falta nos pratos de grande parte dos trabalhadores brasileiros. O Brasil do campo moderno, dessa forma, vai transformando a agricultura em um negócio rentável, regulado pelo lucro e pelo mercado mundial. O agronegócio, na forma que ele existe hoje no Brasil, é sinônimo de produção para o mundo.

As commodities (mercadorias de origem agropecuária vendidas nas bolsas de mercadorias e de futuro, e outras matérias-primas) garantem saldo na balança comercial que vai pagar os juros da dívida interna. A idéia de que o Brasil exporta comida para pagar juros traduz o impasse em que vive o país. Uma solução progressista para essa equação implica em enfrentar os desafios para a construção de um projeto nacional adequado à realidade atual.

Etiqueta de crimes do agrobusiness

A questão nacional e a questão agrária estão intimamente relacionadas — há entre elas uma relação constante de causa e efeito. O jornal O Estado de S. Paulo do dia 16 de maio, por exemplo, reproduz um texto “curto e direto” do The Independet dizendo que a Amazônia “é importante demais para ser deixada aos brasileiros”. O latifúndio, o grande capital e o imperialismo sempre andaram de mãos dadas quando se fala da questão agrária. Temos que saber em que ponto vamos nos unificar porque o outro lado está bem organizado sob a etiqueta do chamado agrobusiness — que tem como marca um histórico de crimes no campo cujas origens são dos primórdios do Brasil como nação.

A elite brasileira decidiu resolver o problema da falta de trabalhadores promovendo uma imigração forçada de escravos como mão-de-obra barata para os fazendeiros. Somente alguns trabalhadores puderam ter a própria terra, mas bem longe de onde o país estava estabelecido — primeiro no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e depois desbravando matas no norte, noroeste e oeste do Paraná. A abolição da escravatura não eliminou a estrutura oligárquica: antes o dono da terra tinha escravos, agora ele tinha vassalos. Tampouco a revolução de 30 e a industrialização do país mudaram essa ordem.

Leis e diretrizes administrativas

Nos anos 70 e 80, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Junto com elas foram aventureiros que viram nesse gesto dos governos militares a oportunidade de expandir suas fronteiras latifundiárias para o norte do país — cortando árvores e destruindo ecossistemas mais antigos do que a própria humanidade para plantar soja e criar gado.

Muitos dos que foram para lá atrás de terra acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e sobrevivem do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio atrás de minerais preciosos.

Esse quadro camponês paupérrimo, enfim, poderia ser radicalmente alterado ao custo de umas poucas leis e diretrizes administrativas. Não faz sentido um país com a extensão do Brasil ostentar um cenário de Idade Média em pleno século XXI. Evidentemente, para essa alteração seria necessário que o governo promovesse uma inflexão no campo.

Vã invocação de Deus em 1964

É fundamental que o Brasil democrático vá até os latifúndios e troque de lugar com os muitos fora-da-lei que hoje dominam vastas regiões improdutivas. Mas nada se fará enquanto essa idéia não for um posicionamento nacional claro e indiscutível. Ainda é recente o caso da histeria causada pelo decreto do presidente João Goulart que declarou de interesse social para fins de desapropriação algumas áreas inexploradas.

A reação a essa medida, cujo ponto alto foi a tristemente famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” realizada dia 19 de março de 1964 pedindo aos militares que expressavam opiniões reacionárias que derrubassem o governo, teve na Sociedade Rural Brasileira — velha entidade de fazendeiros paulistas — um de seus principais organizadores. 

Por trás da vã invocação de Deus e da liberdade estavam os interesses terrenos e oligárquicos dos latifundiários — muitos deles grileiros.  Os recentes episódios de luta no campo demonstram quão enraizada na elite brasileira está essa ideologia. Durante a Assembléia Nacional Constituinte, em 1988, este conflito ganhou proporções dramáticas.

Problema que não se limita ao campo

Do ponto de vista político, essa herança apresenta-se em uma dicotomia clara: de um lado há uns poucos que lutam para manter privilégios com rancor e nenhum bom senso e de outro uma imensa massa sem cidadania que luta por um pedaço de terra. Se há algum radicalismo ele é mero contraponto ao autoritarismo histórico dessa oligarquia. Por nunca ter em seu projeto o conceito de nação, a elite brasileira abriu espaço para ações radicalizadas.

O desafio é gigante. Afinal, num dos pratos da balança estão os proprietários — e seus apoios ideológicos — de algo próximo a 150 milhões de hectares de terras improdutivas, um oceano de solos inúteis ao país que equivale a dois Chiles ou a quinze Coréias, dispostos a defender seus feudos com balas e chantagens — inclusive no Congresso Nacional, ameaçando votações de interesse do governo. No outro prato estão aqueles que lutam pela posse democrática da terra. É um problema que não se limita ao campo. Toda nossa economia é altamente vulnerável.

Cotações ditadas por Chicago

Já devíamos ter aprendido isso há muito tempo. No crack da Bolsa de Nova York, em 1929, o Brasil assistiu impotente à falência de seu comércio exterior, causada pela queda vertiginosa do preço internacional do café, o carro-chefe de nossas exportações à época. Mesmo a pequena produção tem sido sistematicamente prejudicada por esta política de incentivar o agronegócio exportador — qualquer baixa nos preços de mercado dos produtos agrícolas que o governo não possa compensar comprando a safra a preços subsidiados acarreta em centenas de produtores queimando cebola ou derramando leite à frente de instituições federais.

Uma cena que, além de desperdiçar alimentos e enfear as cidades, demonstra que alguns produtores brasileiros ainda não perceberam que a chave da questão é beneficiar seu produto de modo a não ficarem à mercê das cotações ditadas por Chicago. A demissão de Marina Silva insere-se aí. Por isso, não é possível deixar de manifestar a plena discordância com os fatos que levaram à sua demissão.

 

*Secretária de defesa do meio ambiente da CTB

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.