Lições importantes que aprendi na Faculdade de Jornalismo

Uma das boas lições que aprendi quando cursava a Faculdade de Jornalismo foi ministrada pelo Professor Fernando Massote, nas aulas de política. Ele me apresentou o romance O Leopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampeduza, em que o personagem Tancredi, um jovem pertencente à aristocracia falida, se associava ao poder revolucionário, aplicando um “golpe de mestre” do ponto de vista do xadrez político, mas eticamente questionável: “é preciso que tudo mude para que tudo fique igual”, dizia Tancredi.

Recorro à célebre frase para introduzir este artigo no debate sobre a obrigatoriedade da exigência do diploma de curso superior em jornalismo para o exercício profissional no Brasil. A classificação do debate é na realidade um eufemismo. A meu ver, trata-se da possibilidade de desregulamentação da profissão, reconhecida num daqueles reveses da ditadura militar. Tal desregulamentação justificar-se-ia ao classificar o jornalismo exclusivamente como atividade intelectual. Talvez não por acaso, a votação da questão no Supremo Tribunal Federal (STF) ocorra junto à possibilidade de supressão da atual Lei de Imprensa Brasileira, considerada um “entulho da ditadura”, tanto por quem é a favor como por quem é contra a sua derrocada.

Não é difícil constatar que, sendo contra ou a favor da formação superior em jornalismo, muitos recorrem ao argumento de que é necessário melhorar e garantir a liberdade de expressão no País. Se as posições embocam num lugar comum, podemos concluir que os próprios atores sociais demonstram-se confusos quanto aos papéis que representam. Não se deve perder de vista que neste palco o proscênio abriga, primeiramente, o direito da sociedade à informação de qualidade. Não é qualquer informação. Tem que ter qualidade. Mas no pano de fundo, também essencial à constituição desta mise en scène, existem interesses corporativos, tanto do ponto de vista dos trabalhadores – é isso que os jornalistas são no mundo atual – quanto dos empresários da comunicação. O que menos tem se perguntado neste debate é sobre os direitos do cidadão. Entende-se largamente que, para garantir melhores serviços prestados, o Estado deve regulamentar as profissões de médico, advogado, professor, e tantas outras.

Recorro à idéia de que vivemos no mundo da informação. Somos atores desta nova era que se desenha. Portanto, ter informação é estratégico, e mesmo fundamental para o encaixe de nossas existências ao mundo contemporâneo. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) elegeu como mote a idéia de que não se briga somente pelo diploma de jornalismo. Na realidade, também compreendo que ele está em segundo plano, diante da necessidade de reivindicarmos mais qualidade na informação, bem como da Formação Superior para quem a prepara. É neste cenário que se discute a regulamentação – ou a desregulamentação – do mundo informativo brasileiro. Para a liberdade do exercício profissional, não se deve tirar de campo uma formação de qualidade, capaz de fazer os jornalistas responsáveis com os direitos fundamentais da pessoa humana e com o desenvolvimento do País. Um povo bem informado está, em tese, mais preparado para a defesa dos seus direitos.

Os contrários ao meu argumento poderiam perguntar: acaso qualquer diploma de curso superior não daria ao cidadão a capacidade de ser jornalista profissional, e até mesmo especializado em algumas áreas? E eu devolvo uma pergunta: uma vez configurada a mídia como sistema, ela não estaria perpassada por interesses sociais, políticos e econômicos? É por isso que se faz necessária a figura do jornalista como um profissional especializado em filtrar informações, atendendo aos critérios de objetividade, que nada têm a ver com neutralidade, mas com rituais que garantem a pluralidade de opiniões.  A especialidade do jornalista é mediar a conversa da sociedade consigo mesma. Obviamente, esse diálogo ocorre em todas as instâncias, mas para dar maior credibilidade às informações divulgadas, o jornalista atua num filão do Espaço Público, marcado pela obediência aos critérios de objetividade.

Um dos indícios da qualidade da nossa imprensa é a recorrência (prática) dos jornalistas e chefias de redação aos rituais celebrados no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Deontológico). O Código configura uma identidade profissional, um sentimento de pertencimento, marcado pela permeabilidade às dinâmicas do Espaço Público. E a noção de Espaço Público/Opinião Pública não deve aqui ser confundida com aquela interpretação hegemônica, divulgada pelos profissionais e/ou proprietários dos meios de comunicação. O Espaço Público é – dizem os teóricos que pesquisam este campo – uma “caixa de ressonância”, aberta a todos os debates e movimentos da sociedade civil.

A vitalidade do Espaço Público está, portanto, na capacidade de agregar forças e contribuir para a maturação das divergências políticas, diversidades de opiniões e argumentações. E como o sistema jornalístico possui dimensões singulares na cena contemporânea, torna-se impossível pintar o quadro do Espaço Público sem a atuação da imprensa. É salutar este processo de agregação da diversidade democrática, mas ele não ocorre com a mídia se a sociedade assim não compreende a questão. A mídia não funciona como uma caixa de ressonância de maneira espontânea. Ela é um aparato socialmente construído. Os profissionais devem estar preparados para cultivá-la como tal, deixá-la sensível aos clamores de todas as tendências, mesmo as não hegemônicas ou declaradamente contra-hegemônicas.

Poderia aqui surgir a seguinte pergunta: acaso a atuação midiática deve ficar nas mãos de pessoas iniciadas? Não seria um contra-senso, uma vez que a mídia deveria estar aberta a todos os movimentos da sociedade? Não só o jornalismo, mas a mídia como um todo, têm estruturas sistêmicas. Seus atores naturalmente jogam diferentes papéis. E isso acontece mediante um processo contínuo de deliberação de quem está inserido no Espaço Público. Assim, a profissionalização do sistema informativo depende, por um lado, de uma sociedade fortemente mobilizada e organizada pela manutenção dos seus direitos, e por outro de profissionais com um sentimento identitário comprometido com a tarefa de bem informar a sociedade. Portanto, a entrada dos atores/jornalistas no sistema midiático não ocorre individualmente. Estamos sempre em grupo, mesmo pela amplitude social da linguagem e dos discursos. Desta maneira, devemos nos perguntar quais seriam as conseqüências da iniciação do ator/jornalista no Espaço Público, não havendo os sentimentos de pertencimento e identidade espelhados no Código de Ética.

Ainda resta dizer que a desregulamentação do jornalismo está na contramão do que o sistema político brasileiro tem feito com diversas outras profissões. Quem discorda que a regulamentação profissional, por si mesma, é boa para a sociedade? Ainda não descobri por que, neste exato momento, se faz crer que, derrubando-se a regulamentação do jornalismo, o sistema informativo brasileiro se transformaria em algo mais democrático.

Pesquisa CNT/Sensus, divulgada em setembro de 2008, mostrou que para 74,3% da população brasileira é necessário se exigir o diploma para o exercício da profissão de jornalista. 74,8% aprovam a criação do Conselho Federal da categoria e, portanto, de um avanço na regulamentação profissional. Infelizmente, não vi ampla divulgação deste lado da notícia. Talvez o personagem de Lampeduza possa iluminar tal acontecimento. Mudanças de cima para baixo, implementadas sem o respaldo popular, recorrem à fórmula de que “é preciso que tudo mude para que tudo fique igual”.


Verônica Pimenta assessora de imprensa da CTB Minas. Jornalista e Radialista, mestre em Comunicação Social pela UFMG, atualmente compõe a diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais.

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