Juros, inflação e desenvolvimento

Mas data houve em que se acabaram
Os tempos duros e sofridos
Pois um dia aqui chegaram
Os capitais dos países amigos
País amigo, desenvolvido
País amigo, país amigo
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo
E os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé
Nos deram dinheiro e nós plantamos
Só café, só café
É muita terra em que se plantando tudo dá
Mas eles resolveram que nós deveríamos plantar
Só café, só café.

Trecho da música “Canção do Subdesenvolvido”, de 1962, composta por Carlos Lyra e Francisco de Assis.

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À sua maneira, o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, tocou num velho dilema da economia brasileira — a possível contradição entre inflação e desenvolvimento. O assunto foi a atual elevação mundial do preço dos alimentos, segundo ele uma ”inflação boa” porque ”convoca” os países a produzir mais e atender à demanda por alimentos no mundo. Lula disse também que a alta dos alimentos não precisa ser necessariamente combatida com a alta dos juros.

A fala do presidente foi oportuna. Muita gente no Brasil ainda vê o consumo como um gesto pouco nobre. Um marciano de boa índole, que tivesse chegado à Terra pelo Brasil e estivesse estudando a humanidade munido da língua portuguesa, certamente anotaria na agenda que ”consumir” é uma das coisas ruins que se fazem por aqui. O verbo ”consumir”, segundo o Aurélio, significa ”1. Gastar ou corroer até a destruição; devorar, destruir, extinguir (…) 2. Gastar, aniquilar, anular (…) 3. Enfraquecer, abater (…) 4. Desgostar, afligir, mortificar (…) 5. Fazer esquecer; apagar (…) 6. Gastar; esgotar (…)”.

Políticas sociais tímidas e insuficientes

Os sentidos são negativos; as conotações, pejorativas. Não há uma única referência à idéia de comprar ou adquirir, de consumir mais e melhor. Muito menos uma associação com o ato de satisfazer uma necessidade ou saciar um desejo. Claro que para um país como o Brasil o ganho mais visível e imediato que a égide do consumo tem a oferecer é mesmo a elevação do nível de conforto material. Consumir mais e melhor significa também fruir arte, absorver informação, ter acesso ao patrimônio cultural da humanidade. Ou seja: obter satisfações que transcendem à mera necessidade imedita. 

Por que há tantas reservas em relação ao consumo de massas no Brasil? É que o consumo popular funciona como o estopim econômico de transformações sociais. Para o povo, ele é bem-vindo também por isso. As travas brasileiras em relação ao consumo estão no fato de que ele sempre foi privilégio de poucos. Outra vez a estrutura social fendida em dois extremos, arquitetada no passado, azucrina nosso presente e atravanca nosso futuro.

A arquitetura social brasileira é caracterizada por políticas públicas tímidas e insuficientes. A força da ideologia liberal à brasileira, com traços feudais e escravocratas, é a causa dessa timidez — ou insensibilidade social. Uma das alegações dos liberais era a de que a inflação em alta impedia uma ação social mais vigorosa. Como distribuir os frutos de um desenvolvimento não realizado? Primeiro era preciso fazer o bolo crescer para só depois distribuí-lo.

Guinada ”ortodoxa” na condução da economia

No início dos anos 60, essa fantasia ganhou conotação ainda mais autoritária. Os economistas que assumiram o controle depois do golpe militar de 1964 chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio” — ou produto de fantasia; devaneio, utopia.

A política econômica da ”era militar” chegou à crise dos anos 80, que levou à guinada ”ortodoxa” da linha de condução da economia quando o país ingressou na “era neoliberal”. Foi pelo caminho da prioridade à política de “estabilização monetária” em detrimento da postura desenvolvimentista, iniciado no governo do presidente Fernando Collor de Mello, que o Brasil chegou ao Plano Real e ao governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Naquela campanha, FHC brandiu a ”estabilidade” como se fosse a sua grande contribuição à humanidade.

Uma inflação de 1,75% em setembro de 1994 e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno. Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante.

Divisa da campanha do projeto neoliberal

Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC. Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma ”reforma” de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas.

Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo. Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as ”conquistas” da ”estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego.

Era conversa sobre corda em casa de enforcado, como no provérbio. Mas a divisa da campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as ”conquistas” da ”estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.

Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%. No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico.

Críticas a regulamentações aprovados pelo Senado

O projeto neoliberal reavaliou o rumo da campanha, enfatizou os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC — as questões sociais — e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC. Quando ele se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de mudança de rumo tacitamente prometida.

Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu em 2002 e se reelegeu em 2006 — empunhando as bandeiras das questões sociais. O país, no entanto, continuou praticando a mesma política monetária — basicamente centrada na autonomia do Banco Central (BC) para domar o comportamento da inflação pela taxa de juros, segundo metas definidas arbitrariamente. Apesar de poucas alterações, esta política persiste e tem reanimado o debate sobre os rumos da economia brasileira.

No dia 9 de abril, o Senado aprovou a regulamentação da emenda 29, que adiciona R$ 5,5 bilhões em gastos no setor de saúde já em 2008 e mais R$ 17,5 bilhões até 2011; a extensão a todos os aposentados e pensionistas do INSS dos benefícios da política de valorização do salário mínimo (reajustado pela variação do INPC mais o crescimento do PIB de dois anos antes); e a extinção do fator previdenciário — um dos feitos mais nefastos da “reforma” previdenciária realizada na gestão FHC. E por isso vem sofrendo mais uma saraivada de pontapés.

A sentença de um tucano: produzir um esfriamento na economia

Para os liberais, essas medidas representam um desvio do rumo traçado pela política de “estabilização”. E uma ameaça à “responsabilidade fiscal”. O fundo desta grita interesseira é o velho dilema inflação-desenvolvimento. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 11 de abril, o economista tucano Luiz Carlos Mendonça de Barros, que foi um dos esteios da “era FHC”, disse que “pela primeira vez, em muitos meses, as expectativas de inflação superaram o centro da meta que orienta os passos do Banco Central”. E culpa o “superaquecimento da economia”.

Segundo ele, é consenso que um aumento dos juros nas próximas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC deve levar a taxa Selic para perto de 13% ao ano. Mendonça de Barros diz que “o consumo das famílias e os gastos do governo Lula estão se expandindo a taxas de mais de dois dígitos — em termos reais — e, com os gastos relativos aos investimentos privados, criam uma pressão muito grande sobre alguns mercados importantes”.

O economista tucano escreveu também que já havia alertado sobre o “nível de absorção interna de bens e serviços”, pelo qual as tensões chegariam a setores não defendidos pelas importações. Resultado, segundo ele: a inflação média começaria a se elevar. “Ao longo dos últimos meses, essa dinâmica aprofundou-se, também no mercado de trabalho e pelo crescimento do crédito ao consumo”, afirmou. “Era apenas uma questão de tempo para que as pressões de preços aflorassem de forma mais clara nos indicadores oficiais de inflação”, escreveu. E deu a sentença final: “É preciso produzir um esfriamento na economia.”

A alternativa é plantar ”só café, só café”, como na música?

Seguir à risca a receita liberal seria repetir o aguçamento daquela calamitosa teoria do bolo, levada a cabo nos anos de ditadura militar, que partiu o Brasil em dois países antagônicos. Nada melhor para ilustrar a convicção e o sectarismo monetarista do que a teoria do bolo — seus defensores têm o ar de quem está sempre descobrindo a pólvora. Na “era FHC” vimos isso com nitidez.

Dizia-se, com a habitual obviedade para encaixar um sofisma, que o bolo (a economia nacional) era um só e tinha de ser dividido em partes iguais. Não adiantava querer aumentar as partes enquanto o bolo fosse o mesmo. A análise monetária-culinária que faziam tinha como mandamento principal a contenção da inflação, sacrificando o desenvolvimento. E era ilustrada com um exemplo matemático — diziam que o bolo tem 100 unidades, logo deve ser dividido em partes que somam 100 ao final. Esta foi, por exemplo, a propaganda da “Lei de Responsabilidade Fiscal”, que blindou o superávit primário. Um engodo, está claro.

A teoria era a de que quando são destinadas 80 unidades para consumo e 40 para investimentos, o resultado de 120 era a inflação. Para eles, não havia outro caminho. Esta ladainha foi sempre repetida na “era FHC” — o então presidente da República chegou a dizer que a “Marcha dos 100 mil”, que inundou Brasília com um mar de gente para protestar contra a sua política econômica, era “a marcha dos sem rumo”. Qual seria a alternativa? Segundo eles não havia, a não ser plantar “só café, só café” — como na letra da música que citei acima. Ou seja: produzir superávit primário.

Uma ou duas causas da inflação e do desenvolvimento

Ignoraram essa coisa simples de que fórmulas matemáticas não devem substituir o desenvolvimento de um povo que habita uma região cheia de riquezas naturais. A política econômica de um país não pode ser determinada por simples conceitos monetários. Esta auto-suficiência dos neoliberais esclarece muitas coisas dos problemas sociais e econômicos do Brasil. E sucita novas indagações sobre a atualidade do dilema infação e desenvolvimento — as opiniões divergentes continuam e o tempo ainda não lhe trouxe solução.

Eles ignoram também que não existe um diagnóstico simples e objetivo da inflação. A suposição da existência deste diagnóstico é o erro fundamental dos neoliberais — que tratam política econômica e a sua teoria monetária como a mesma coisa. O ex-presidente do BC na ”era FHC”, Gustavo Franco, certa vez afirmou que não discutia mais o dilema inflação-desenvolvimento porque, segundo ele, não era mais tema científico mas emocional e religioso. Mas muita coisa já ficou esclarecida nestes últimos anos do governo Lula.

Uma delas é que o dilema inflação-desenvolvimento é o ponto fundamental da grande questão da economia brasileira sob a orientação desta teoria monetária. Já é alguma coisa saber disso. E já se sabe não apenas que esta é a grande questão como também que não existem uma ou duas causas determinantes tanto da inflação quanto do desenvolvimento. Há sim uma variada relação de causas e efeitos igualmente importantes, monetários e estruturais. E isso tornou-se claro depois da experiência dos neoliberais na ”era FHC”, quando todo o tempo foram afirmadas teses ditas únicas para a economia brasileira que chegaram a resultados melancólicos. 

Soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta

Com o desmentido de promessas feitas em tom de profecias, cresceram as evidências de que o país tomara o caminho errado. Mesmo os continuadores dessa política na primeira fase do governo Lula, com o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci à frente, que empolgaram-se e sectarizaram-se na defesa de teses ”ortodoxas” — talvez por supor que estavam no exercício de um poder absoluto —, foram repudiados por todos os que não rezavam pela cartilha neoliberal. Eles incorreram na soberba do galo que pensa que o sol nasce porque ele canta. Segundo sua teoria, a gestão da economia só poderia dar resultados positivos se estivesse submetida às suas elucubrações e por isso cantavam para que o sol nascesse.

Desse modo, incorreram em um erro de análise econômica, decorrente de um erro muito maior de análise política — passaram a ser elogiados por todos que apoiaram a ”era FHC” e criticados pelos apoiadores do governo Lula. A saída de Palocci do governo arejou o ambiente na equipe econômica, mas a economia do país ainda é dependente do conservadorismo do Copom. Isso ocorre porque o projeto democrático e popular de sociedade ainda é algo que está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade fundada na defesa dos interesses nacionais, disposta a erigir sistemas que sustentem a longo prazo o desenvolvimento econômico e a distribuição da riqueza produzida. Ou seja: desenvolvimento com valorização do trabalho.

 

*Assessor de comunicação da CTB

 

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