Importância dos testes para o Covid-19 como sinalizadores epidemiológicos

Combate à pandemia exige união dos poderes da federação e mais investimentos no SUS, mas presidente vai na contramão do bom senso e das recomendações da OMS

Por Rubens Ianelli, médico e artista plástico

Para quem vem de uma geração que chegou a ser qualificada de geração perdida do ponto de vista político, esta é a primeira pandemia. A mais conhecida foi a dita Gripe Espanhola, ocorrida entre 1917 a 1920. Nossos avós passaram por ela e sobreviveram. Dizem que matou um terço da população mundial.

Minha mãe falava sempre dessa pandemia. Falava com meias palavras, tom mais baixo, quase desconfiada de que alguém estaria ouvindo a sua confissão, que dizia: a gripe espanhola matou muita gente meu filho, morria gente pela rua e as carroças a carregar aqueles montes de corpos. Ela dizia isso com ar de terror. Acontece que minha mãe nasceu apenas em 1923 e não viveu nada daquilo que ela estava contando. A geração seguinte, que nem chegou a viver a pandemia, ficou com o fato registrado na memória ou no inconsciente coletivo, se assim quiserem dizer. Ficou uma dor, uma marca que não se apagou da memória humana coletiva. A atual pandemia pelo Covid-19 deixará marcas parecidas em nós, em nossos filhos e netos e naqueles que ainda nascerão para serem os futuros testemunhos dos caminhos da humanidade. Hoje é bem diferente de 1917. De certa forma são momentos quase incomparáveis.

Hoje, apesar de uma população global explosivamente maior que 100 anos atrás, temos um arsenal tecnológico bem avançado que pode ser direcionado para a produção de insumos à saúde mundial. Assisti alguns capítulos de uma série chamada Segunda Guerra Mundial a Cores, que mostrava as batalhas navais no Mar do Norte, tendo o domínio da Alemanha sobre os países escandinavos  em contraponto ao Reino Unido, que formava uma barreira nas mesmas águas para a passagem de embarcações alemãs para o Oceano Atlântico. O Canal da Mancha era como um divisor de águas. Naquele Mar do Norte foram travadas incontáveis batalhas navais da marinha germânica contra os demais. O Mar do Norte é um imenso cemitério de navios cargueiros e de guerra, de submarinos , fragatas, aviões e muitas, muitas vidas de jovens militares e civis que por lá navegavam. As indústrias produziam veículos, aviões, navios, e todo o tipo de armamento e munição para alimentar aquela guerra. A cada dia era preciso uma inovação tecnológica nos armamentos para superar o inimigo. A economia mundial estava voltada para produzir artefatos de guerra, de destruição, um desperdício de milhares de toneladas de ferro afundadas no mar, horas e horas de trabalho humano investido para ser estupidamente desperdiçado na destruição.

A demanda por homens na indústria bélica e nas frentes de batalhas era tamanha que faltou mão de obra e as mulheres foram para a linha de produção. Era um verdadeiro teatro de absurdos, em que cérebros brilhantes e recursos caros à natureza eram empregados na produção de chamas e explosões de bombas. Cidades destruídas em um só ataque em massa de aviões, acabando com 30.000 vidas em poucas horas, em um mesmo dia. O mundo vivendo nessa economia de guerra queimou vultuosas somas de capital!

Pois bem, dizem hoje que enfrentar a pandemia de Covid-19 é também uma guerra, contra um inimigo invisível. Olhando por esse lado, então temos que constituir um Estado de Guerra, que no meu entendimento começa com um comitê consultivo, formado por nomes comprovadamente conhecidos e testados na ciência que possam contribuir para que os poderes constituídos do país deem  passos apropriados para o bem da população brasileira. Para a medicina e para a saúde pública o lema é preservar a vida, dar condições para que a vida corra melhor, contando com uma atenção continuada e bem tratada.

Há nessa pandemia um aspecto técnico de grande importância que são os testes para detectar se a pessoa teve ou não contato com o vírus. A primeira parte a considerar é a possibilidade de conseguir testes em quantidades desejáveis e necessárias. Além de possuir o teste é necessário ter capacidade técnica para analisá-los. Esse problema está sendo enfrentado por todos os países atingidos pela pandemia.

Exemplos no controle da pandemia

Países mais ricos como a Alemanha, vitrine do capitalismo, devem ter desembolsado boas quantidades de euros para garantir seus kits para testes em massa. A Alemanha conseguiu um dos melhores desempenhos no enfrentamento da pandemia frente a seus colegas vizinhos. O mesmo podemos inferir a respeito dos sucessos em Singapura, que foi exemplo no início, fazendo controles sanitários, testes em profusão em cada suspeito ou qualquer pessoa que tenha entrado em contato com suspeitos. No entanto, com o alarde mundial, milhares de cidadãos retornaram a Singapura, vindos dos mais diferentes locais e o vírus veio junto, o que gerou uma segunda onda e agora Singapura também teve que tomar medidas de quarentena.

Seguindo o exemplo de Singapura no uso generoso dos testes, podemos deduzir que testes positivos servem como sinalizadores, como pequenos faróis indicando os caminhos dos vírus. Hoje em dia com a alta tecnologia é possível traçar o percurso do vírus através do rastreamento de celulares das pessoa infectadas, por exemplo. A Inglaterra parece que acabou de adotar este método de detecção mais ampla dos focos virais. No Rio de Janeiro temos a Fiocruz, pertencente ao Ministério da Saúde, em São Paulo, o Instituto Adolpho Lutz e Butantan, além de várias sucursais da Fiocruz pelo interior do Brasil, que nos dão aporte científico para o que necessitamos, além de contar com profissionais exemplares.

Os testes pensados como sinalizadores epidemiológicos de transmissão podem ser vistos em programas de computadores que “desenham” os percursos dos vírus pelo país. Modelos matemáticos são desenvolvidos com esse fim de pesquisa. Particularmente reconhecido como grande especialista nesse assunto de modelos matemáticos temos o Dr Claudio Struchiner, da Fiocruz-Rio. Este é um aspecto que podemos aproveitar do teste como um preditor, monitorando os deslocamentos das pessoas que apresentaram testes positivos e seus contatos com a população. A partir dessas informações são acionados os mecanismos de contenção da disseminação do vírus.

O Consórcio Nordeste, tendo à frente o eminente neurocientista brasileiro, doutor Miguel Nicolelis, parece ter assumido uma atitude mais arrojada, lançando brigadas a campo para rastrear pessoas com sintomas compatíveis com a doença e traçar um plano de contenção da transmissão para cada situação nova. Eles também se basearam na tese de que o teste é um instrumento vital para se estabelecer estratégias mais eficientes para a debelação da pandemia. No caso desse consórcio de estados do nordeste, a primeira opção parece que foi a aquisição dos chamados testes rápidos, que estavam mais disponíveis no mercado e pela urgência de se iniciar esse combate imediatamente.

Por isso que existe a recomendação de se realizar o maior número de testes na população, para pegar inclusive os assintomáticos que também transmitem o vírus. O teste não é apenas um número a mais nas estatísticas é também um preditor da evolução da pandemia.

Investimento no SUS e na vida

Os investimentos nos testes em grande número e de maneira ampla, junto com a contratação de pessoas que atuem em campo, além da retaguarda tecnológica, são volumosos, mas seguramente bem menores que os investimentos para construir bombas e máquinas de guerra. No curso dessa pandemia meio sem rumo, uma pessoa positiva para Covid-19, que está infectada mas assintomática e que nem sabe que está com o vírus e está circulando, caminhando pelas ruas, utilizando o transporte coletivo, indo aos mercados e em outros estabelecimentos, estará espalhando o vírus  e dessa forma a disseminação da doença cresce exponencialmente.

O outro aspecto do teste como sinalizador epidemiológico é que através dele é desencadeada uma série de ações concretas junto à população. Brigadas ou equipes de vigilância monitoram locais com casos positivos e suspeitos, o trabalho de educação em saúde é intenso e ininterrupto e soluções emergenciais como construção de hospitais de campanha, adaptação  de escolas e de estádios esportivos com leitos para receber as pessoas em observação são necessários. Temos o exemplo dos moradores da favela de Paraisópolis em São Paulo, que se auto organizaram e montaram estes locais de acolhimento para os pacientes, garantindo inclusive a alimentação dos mesmos através de doações.

A pandemia requer coordenação e união urgente entre todas as estruturas do estado brasileiro. Qualquer fricção nessa estabilidade acarretará em mais prejuízos para o povo brasileiro. É fácil perceber que quanto mais temos noção exata do número de pessoas infectadas maiores serão os desafios para controlar a propagação do vírus, maiores as necessidades de cooperação entre a união, os estados e os municípios do país. Isso, sim, demanda uma economia e um plano de guerra contra a pandemia e a autoridade máxima da nação deve agir como o maestro do Estado brasileiro.

Governo na contramão

No entanto, o governo brasileiro é declaradamente contra as orientações da OMS e afins. Ponto final, não se fala mais nisso, corre a doença e morram quantos tiverem que morrer, de preferência aqueles que oneram o Estado com aposentadorias.  Esse é o discurso e a opção oficial. É evidente que a opção por testes em massa, que é mais onerosa,  está descartada da atual política oficial brasileira de combate ao Covid-19. A opção da locação de poucos recursos para a saúde já vem de um tempo. Só para ilustrar o paradoxo,  em 2016 o Congresso Nacional votou e aprovou a Emenda Constitucional 95 também chamada PEC da Morte, que alterou a Constituição de 1988 e congelou os gastos  públicos por 20 anos!  Podemos pensar em modelos alternativos e seriamente empenhados na vigilância epidemiológica da pandemia talvez em estados, micro regiões ou municípios que encontraram formas de se auto sustentarem nesse campo de batalha.

Com poucos testes estamos sujeitos à subnotificação de casos exibindo números que podem e devem estar bem defasados da realidade brasileira.  Frente a este descontrole temos o esgotamento da capacidade de absorção e resolução pelo SUS. No entanto, o SUS vem se impondo como modelo avançado e necessário de um sistema de saúde público amplo e universal que atenda a toda a população brasileira.

Como diz o ditado “a corda quebra sempre do lado mais fraco”, ou seja, os municípios é que estão no front. Toda a pirâmide da estrutura municipal está mobilizada 24 horas ao dia. Da ponta da pirâmide, do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, passando por todos os graus de complexidade dos serviços de saúde até a base da pirâmide onde estão os agentes comunitários de saúde há um movimento contínuo para combater a pandemia. Ainda que façam uso de EPIs (Equipamento de Proteção Individual), vivem direta e cotidianamente o drama que se abate sobre nossa gente, notadamente da população mais pobre. Vários profissionais de saúde já foram infectados e mortos em virtude do Covid-19. Vidas e mais vidas de tanta gente boa que ajudou a construir um Brasil melhor estão partindo e a morte chegando cada vez mais perto das nossas portas. 

Parece inútil repetir o que os noticiários já estão fartos de mostrar a todo instante, mas é bom relembrar que o governo federal não assume uma política de valorização da vida, como tantos bons exemplos que temos visto pelo mundo. O que temos é o incentivo oficial à desobediência em relação às orientações dos organismos de saúde, promovendo um clima de caos na sociedade, boicotando o quanto pode as medidas de isolamento e de quarentena, além de incentivar manifestações políticas com aglomerações humanas. Essa postura influenciou bastante a desmobilização e relaxamento das medidas de quarentena. Com isso, estimulou a disseminação da doença incontrolavelmente no seio da população.

O mais alto grau de contágio

Inteiramente insensível à dor do outro, este elemento que ocupa o posto da Presidência da República é adepto da ditadura, da tortura física e ligado às milícias, grupos armados que agem à margem da sociedade legal. Não é surpresa que se revele absolutamente insensível às lágrimas dos pais, dos filhos, dos amigos, que terão a marca triste da perda de entes queridos em suas vidas. Uma dor que estará sempre no coração daqueles que passaram por isso. Esta pandemia atravessará o tempo através da memória dos que restarem e das gerações vindouras. O Brasil está classificado com grau de contágio 3 (uma pessoa infectada passa o vírus para mais três pessoas) considerado o mais alto grau. O nosso país apresenta-se ao mundo como forte candidato ao lugar mais alto no pódio das nações com pior desempenho contra a pandemia do Covid-19.

Resisto em aceitar o que o ator Flavio Migliaccio deixou escrito em sua carta de despedida: “a humanidade não deu certo”, mas a mensagem me faz refletir. Por enquanto somos apenas espectadores que presenciam a rápida ascensão dos mais sórdidos sentimentos humanos sendo exaltados por aqueles que hoje comandam a nação.