Digitais africanas no barro civilizatório brasileiro

Esu é a “pedra fundamental” da tradição ioruba. Ele sustenta o edifício dessa milenar forma de sacralização das forças cósmicas do universo, de acordo com Oga Gilberto Antônio Ferreira[2]. Nas palavras do babalorisá José Tadeu de Paula Ribas[3], a “degradação” de Esu foi decisiva para a escravização dos povos das regiões atuais das Repúblicas da Nigéria, do Benim e Togolesa, na África Ocidental.

O etnocídio foi articulado com o objetivo de submeter os povos negros às condições degradantes.

É esse o cenário das violências perpetradas contra as tradições africanas. Ela procura manter o processo de desumanização do elemento negro, inaugurada no século VII, pelos povos da península arábica, e a partir do século XVI, pelos povos europeus[4].

A desarticulação do legado das civilizações negras foi a condição sine qua non para o êxito da “corporação escravocrata”.

Desde a “abolição formal”, as táticas de sujeição mudaram, mas mantiveram a essência desumanizadora.

No período pós 1888, os terreiros [locais de síntese das diversas tradições africanas das matrizes ioruba, jejê e bantu] foram espaços de rearticulação dos universos cosmológicos desses povos.

Neles, foram tecidas as novas narrativas sagradas, formas de organização sociais e associativas, práticas pedagógicas tradicionais [imanências e transcendências], visões éticas e estéticas, para a “nova ecologia humana” que se descortinou.

Um ponto de inflexão da “quilombagem”[5]!

No período “duro” da transição demográfica [entre os anos de 1870 e 1930, quando se decidiu pelo extermínio do elemento negro, no prazo de cem anos, segundo as palavras do representante brasileiro no Congresso Universal das Raças, em Londres, em 1911, João Batista de Lacerda[6]], os terreiros foram as bases das novas identidades negras.

O arquétipo dos òrìsá, nkisi e vodun alimentou a autoestima, a coragem e a valorização dos traços negros, ante a violência da sociedade global e do estado.

Eles foram o anteparo ao preconceito [visão de menor valia], à discriminação [segregação física e simbólica] e ao racismo [genocídio] que se abateu sobre os afrodescendentes.

Na fase moderna, em que as cidades se transformaram em local das grandes disputas políticas [tangíveis e intangíveis], segundo o geógrafo Milton Santos[7], o espaço vital do terreiro se converte em obstáculo à fúria neoliberal.

O terreiro foi o hospital, a escola, a moradia, o “porto seguro das políticas públicas” das populações desassistidas. Nas periferias abandonadas pelo estado [morros, favelas, cortiços, áreas alagadas e degradadas] insurgiam “as cidadelas” negras.

A fúria “sectária” neopentecostal é a configuração litúrgica do capital e da expropriação global da mais-valia. O “ter” procura esmagar o “ser” com o “desejo oculto” de aniquilamento da diversidade.

Os valores civilizatórios afro-brasileiros enlaçados nos terreiros [oralidade, circularidade, religiosidade, corporeidade, musicalidade, cooperativismo/comunitarismo, territorialidade/território, ancestralidade, memória, ludicidade e energia vital/asé, segundo a pedagoga Azoilda Loretto da Trindade[8]] são obstáculos a essa sanha.

A razão que se esconda por trás das violências contra as tradições africanas, portanto, é a desumanização da afrodescendência, como uma das estratégias para ocupação do território das cidades pelo capital. Fanatismo religioso convertido em reacionarismo político!

Esse enfrentamento se repete em todas as “quebradas” do mundo, onde essas tradições são polos de resistência.

Por esses motivos, a defesa das tradições afrodescendentes e afro-brasileiras é uma imposição ética para todas e todos que sonham [mas com a condição de realizá-la] com uma sociedade igualitária, diversa e múltipla, e com a presença imprescindível das digitais africanas no barro civilizatório brasileiro.

*Juarez Xavier é coordenador Executivo do Núcleo Negro Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” [UNESP] para a Pesquisa e Extensão [NUPE].

[2]Disponível em http://ogagilbertodeesu.blogspot.com.br/2010/05/resumo-ao-defendermos-tese-de-que-esu.html.

[3]Disponível em http://blog.ori.net.br/?p=687.

[4]Disponível em http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/general_history_of_africa_collection_in_portuguese-1/#.Vull6PkrKM8.

[5]Disponível em http://www.grabois.org.br/portal/resenhas/135474/2015-06-19/o-pensamento-radical-de-clovis-moura.

[6]Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702011000100013.

[7]Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/semangeo/pdf/Capitulos_do_livro.pdf.

[8]Disponível em http://www.diversidadeducainfantil.org.br/PDF/Valores%20civilizat%C3%B3rios%20afrobrasileiros%20na%20educa%C3%A7%C3%A3o%20infantil%20-%20Azoilda%20Trindade.pdf


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