Cenário internacional em 2019 foi de protestos e incertezas

A tecnologia tem se mostrado o principal vetor de transformação da década e, em 2019, não poderia ter sido diferente. O ano presenciou grande quantidade de protestos alimentados por instrumentos típicos da era digital.

O comércio internacional e a integração regional viveram um período instável, com novos acordos sendo negociados e instituições que um dia pareceram consolidadas sofrendo revezes significativos.

A floresta amazônica esteve no centro das atenções mundiais e as ruas foram tomadas por movimentos que dão esperança de que a humanidade não fugirá da luta pela sustentabilidade.

Destacamos, a seguir, alguns dos acontecimentos que marcaram o mundo em 2019.

Planeta sob protestos

Se a tecnologia em geral foi o pano de fundo dos anos 2010, uma ferramenta que ocupou lugar de protagonista na história desse período certamente foi o smartphone.

Telefones celulares com acesso à internet e câmeras fotográficas não apenas mudaram o dia a dia das pessoas, mas também contribuíram para os protestos que se espalharam por diversos cantos do planeta e que, desde a Primavera Árabe, em 2011, têm causado turbulência e mudança política. Normalmente iniciadas com base em alguma reivindicação específica, essas manifestações acabam por ampliar seu foco para questionar – e muitas vezes derrubar – governantes e regimes.

Em 2019, o cenário não poderia ter sido diferente, como demonstram os protestos registrados em países tão diversos quanto Rússia, Índia, Haiti, Egito e tantos outros.

Vejamos alguns exemplos.

Na África, podem ser destacados o Sudão e a Argélia. No primeiro, o ditador Omar al-Bashir, havia 30 anos no poder, não resistiu aos protestos que tiveram início motivados pela alta de preços do pão e dos combustíveis e, em abril, foi deposto e preso, sendo substituído por uma junta militar. Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika, após vinte 20 anos como presidente, renunciou também em abril, depois de meses de manifestações intensas.

Na Europa, a França continuou enfrentando a revolta dos coletes amarelos, iniciada em 2018, a qual se somaram, na segunda metade do ano, novas manifestações contra a reforma que o presidente Emmanuel Macron pretende promover na previdência social. Já a Espanha assistiu a novos protestos na Catalunha, causados pela condenação à prisão de nove líderes do movimento independentista daquela região pela suprema corte espanhola.

Na Ásia, o povo foi às ruas em Hong Kong para exigir a retirada de um projeto de lei proposto pelo governo local que permitiria a extradição para a China continental. Em resposta, o governo recuou e desistiu do projeto, mas era tarde. O movimento seguiu ganhando corpo, e os confrontos entre polícia e manifestantes estiveram entre as imagens mais marcantes do ano que se encerrou.

Diversos protestos assolaram o Oriente Médio. O aumento do preço dos combustíveis levou a uma rebelião que não se via há tempos no Irã, severamente repreendida pelo regime. No Iraque, a população se insurgiu contra a corrupção e o desemprego. Nos dois países, como forma de tentar conter os movimentos organizados principalmente por meio das redes sociais e de evitar a propagação de fotos e vídeos da repressão policial feitos por meio de telefones celulares, os governos chegaram a bloquear o acesso à internet.

Já o Líbano viveu aquele que talvez seja o mais emblemático caso de 2019 – a chamada “Revolução do WhatsApp”. A revolta começou após o anúncio de novos tributos, entre eles um que incidiria sobre chamadas de voz por meio de aplicativos que utilizam a tecnologia Voip. Mesmo que a reação da população tenha levado o governo a descartar em seguida a ideia, os protestos se ampliaram, passaram a questionar a crise econômica por que passa o país e levaram à renúncia do primeiro ministro Saad Hariri em outubro.

Na América Latina, a tentativa de Evo Morales de continuar no poder na Bolívia esteve na origem da rebelião que levou à sua renúncia. Tendo manobrado para alterar a Constituição a fim de que esta lhe permitisse uma nova reeleição, a suspeita de fraude na votação de 2019 levou à queda de Morales, substituído interinamente pela senadora Jeanine Áñez. Novas eleições devem ser realizadas no país em maio deste ano. O Equador viveu dias agitados após o presidente Lenín Moreno decretar – e precisar voltar atrás, pela reação da população – o fim de um subsídio aos combustíveis que já durava 40 anos, como parte de um pacote de ajustes destinados a cumprir metas acertadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

A Venezuela continua em crise. A disputa entre Nicolás Maduro e a oposição se acirrou no começo de 2019, quando o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se autoproclamou presidente interino do país. Maduro chegou a fechar as fronteiras com a Colômbia e o Brasil para evitar que estes pudessem oferecer a ajuda humanitária pedida por Guaidó.

No Chile, movimentos populares atingiram um pico de violência em 2019. Também nesse caso, a origem foi pontual – um aumento no preço das tarifas do metrô de Santiago – mas as manifestações ganharam outra dimensão ao canalizarem a insatisfação popular com a desigualdade social. O presidente Sebastián Piñera decretou estado de emergência e, em uma tentativa de conter a rebelião, trocou todo seu ministério e propôs um referendo para mudar a constituição chilena, a ser realizado em 2020.

Na Argentina, o descontentamento da população – que chegou a tomar as ruas em setembro, contra a fome e a crise econômica – levou à derrota do Presidente Maurício Macri nas eleições de outubro para o peronista Alberto Fernández, que tem como vice-presidente Cristina Kirchner. A possível postura protecionista do novo governo argentino e os atritos com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro durante a eleição podem representar uma ameaça ao Mercosul, que, como veremos a seguir, acaba de viver um ano surpreendentemente positivo.

Os altos e baixos do Comércio Internacional e da Integração Regional

O multilateralismo sofreu um duro golpe em 2019, já que a ameaça de paralisação do Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC) se concretizou. Esse tribunal, que deveria ser composto de sete membros, precisa contar com ao menos três deles para garantir seu funcionamento e já estava desfalcado de quatro juízes.

Em dezembro, o mandato de dois dos três membros que remanesciam no Órgão terminou e não foram nomeados substitutos. O motivo foi o bloqueio por parte dos EUA, que alegam serem prejudicados por esse órgão, que estaria extrapolando sua função e praticando ativismo judicial – as regras da OMC preveem que as decisões devem ser tomadas por consenso, bastando um país se opor a uma delas para que não seja adotada.

Com isso, ainda que siga sendo possível acionar a primeira instância do sistema de resolução de controvérsias da organização – os chamados panels – eventuais recursos não serão julgados, o que deixará a solução dos casos em suspenso. Os países membros estudam alternativas para possibilitar apelações, como a utilização de mecanismos de arbitragem ad hoc, mas o fato é que a interrupção do funcionamento do Órgão, uma espécie de “supremo tribunal” do comércio global, mina um dos alicerces do sistema multilateral de comércio.

Além de sofrer em seu lado institucional, o comércio internacional sofreu na prática durante 2019.

A guerra comercial entre EUA e China chacoalhou a economia mundial, com anúncios de imposição de tarifas de parte a parte e sucessivas negociações. Em dezembro, foi fechada a primeira fase de um acordo comercial entre os dois países, prevendo a redução de algumas das tarifas sobre produtos chineses que haviam sido impostas pelos EUA e o compromisso da China de adquirir mais produtos agrícolas americanos. Entretanto, como se sabe, essa trégua pode estar a apenas um tweet de ser rompida.

De forma geral, a hostilidade à abertura comercial, tendência que já vinha sendo constatada, se manteve em 2019. Como alertou a OMC no meio do ano, os países do G20 introduziram, entre outubro de 2018 e maio de 2019, 3,5 vezes mais barreiras comerciais do que a média dos últimos 7 anos, tendo essas medidas atingido um fluxo de quase US$ 340 bilhões, segundo maior valor já registrado pela organização. O resultado, de acordo com os cálculos da OMC, deverá ser uma redução na taxa de crescimento do comércio global em 2019, de 2,6% para 1,2%.

No âmbito da integração regional, a novela do Brexit parece estar se aproximando de seu final.

O fracasso em retirar o Reino Unido da União Europeia (UE) levou à renúncia da primeira ministra Theresa May em maio, e à subsequente eleição de Boris Johnson. Este deverá, graças à ampla vitória de seu Partido Conservador nas eleições de dezembro, cumprir a missão, com ou sem acordo com a UE, apesar dos efeitos potencialmente desastrosos que uma solução não negociada deverá ter para o país.

Mas o ano também teve boas notícias nessa área.

Em 2019, entrou em vigor o acordo comercial entre UE e Japão, que cria um bloco com 600 milhões de pessoas, que abrange um terço do PIB global e 40% do comércio mundial.

E, em junho, finalmente foram concluídas as negociações do acordo de livre comércio entre Mercosul e UE, que levaram 20 anos, o que poderá formar a área de livre comércio mais populosa do planeta, com um mercado de quase 780 milhões de pessoas e um PIB total de US$ 20 trilhões.

Pelo Acordo, a UE zerará, no prazo máximo de 10 anos, as tarifas de importação de mais de 90% das exportações do Mercosul, e concederá às restantes acesso preferencial por meio de quotas e reduções parciais de tarifas. Além disso, a UE eliminará 100% de suas tarifas sobre a importação de produtos industriais do Mercosul.

É verdade que, depois de assinado, o acordo ainda precisará ser aprovado pelos parlamentos dos países membros do Mercosul e pelo Parlamento Europeu e que, para sua completa entrada em vigor, dependerá, ainda, da ratificação pelos Estados que integram a UE. Durante esse processo, estará sujeito a pressões. E, nesse sentido, o aumento do desmatamento na Amazônia neste ano – que abordaremos a seguir – não ajuda, ainda mais quando se sabe que esse acordo comercial contará com um capítulo específico no qual as partes se obrigarão a respeitar seus compromissos em relação aos acordos multilaterais ambientais, ao desenvolvimento sustentável e à conservação das florestas e da biodiversidade – o mesmo ocorrendo com outro importante acordo comercial que foi negociado pelo Mercosul em 2019, com os países do EFTA (Suíça, Islândia, Liechtenstein e Noruega).

Situações insustentáveis que se mantêm
Naquelas que são provavelmente as duas maiores ameaças globais à vida humana na Terra, o ano foi de poucos avanços e muitas más notícias.

Quanto à primeira delas, o risco de um conflito nuclear – que vem assombrando a humanidade há mais tempo – pode se dizer que o mundo ficou menos seguro em 2019.

EUA e Rússia encerraram o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), assinado em 1987 com a finalidade de controlar a proliferação de mísseis terrestres de médio alcance, o que pode levar a uma nova corrida armamentista.

No que poderia ser uma nota positiva, o Donald Trump e o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-Un, realizaram um encontro histórico em junho no qual Trump chegou a cruzar por alguns instantes a fronteira na zona desmilitarizada entre as duas Coreias para se tornar o primeiro presidente americano a pisar em solo norte-coreano. No entanto, depois disso, as tratativas para controlar o programa nuclear norte-coreano não tiveram sucesso, e a Coreia do Norte anunciou no final do ano a suspensão das negociações e a retomada dos testes nucleares e com mísseis balísticos intercontinentais.

A relação entre EUA e Irã – que promete ser um dos temas mais críticos de 2020 – se deteriorou ainda mais em 2019. Em abril, o governo dos EUA classificou como organização terrorista a Guarda Revolucionária Iraniana, que teve o líder de sua força Quds, general Qassim Suleimani, morto agora no início do ano em Bagdá em um ataque com drones ordenado pelo presidente Donald Trump.

Em julho de 2019, o Irã já havia afirmado que não pretendia se ater ao limite de 3,67% de enriquecimento de urânio estabelecido no Acordo Nuclear com o chamado G5+1 (EUA, China, França, Grã-Bretanha, Rússia + Alemanha), do qual os EUA haviam se retirado um ano antes. Com a morte de Suleimani, Teerã anunciou que não respeitará mais os termos desse acordo, aumentando o risco de uma escalada nuclear na região.

E, com relação à outra grande ameaça a que a humanidade está sujeita, o aquecimento global – da qual a consciência é mais recente e vem gradualmente aumentando – não se viveu um bom ano igualmente.

Não é para menos que, na tradicional escolha promovida todos os anos pela editora que publica o Dicionário Oxford e que define aquela que foi a palavra ou expressão que atraiu mais interesse e refletiu o espírito e as preocupações daquele período, a selecionada foi “emergência climática”.

Nos meses de agosto e setembro, as queimadas na Amazônia tiveram repercussão internacional, causaram atritos diplomáticos, colocaram o Brasil sob a ameaça de boicotes por parte de empresas e consumidores de outros países e puseram em risco os acordos comerciais do Mercosul com a UE e com o EFTA – os quais, como vimos, possuem cláusulas relacionadas à preservação ambiental.

Em dezembro, outra notícia frustrante para o meio ambiente veio da COP 25, conferência anual que reúne os países signatários da Convenção Quadro sobre as Mudanças Climáticas da ONU, realizada em Madri, onde não se chegou a um acordo sobre a regulação dos mercados de créditos de carbono nem se garantiu que os países ampliarão as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa a que se comprometeram no Acordo de Paris – as quais são sabidamente insuficientes para impedir que a temperatura da Terra aumente mais do que 1,5ºC, o que permitiria evitar os efeitos mais drásticos das alterações do clima. Agravando esse quadro, em novembro os EUA – que são o segundo maior emissor mundial de gases de efeito estufa – já haviam notificado a ONU para dar início ao processo de retirada do Acordo de Paris, que deve levar um ano.

2019 também termina, por outro lado, com a sensação de esperança. Durante o ano, ganharam força as manifestações ambientais de estudantes do mundo todo, em meio ao movimento denominado “Fridays for Future”, que promove greves globais pelo clima inspiradas na ativista sueca Greta Thunberg, de 16 anos, que protestava todas as sextas-feiras em uma praça em frente ao parlamento de seu país para pedir medidas concretas contra o aquecimento global. Em setembro, Greta discursou na Cúpula de Ação Climática da ONU para líderes de 60 nações que estavam no encontro convocado pelo secretário-geral da organização, António Guterres. Em dezembro, Greta seria escolhida personalidade do ano pela revista Time.

Quem sabe o engajamento dos jovens é capaz de provocar uma guinada política e convencer os líderes mundiais a responderem à altura à emergência climática?

Temos mais um ano inteiro pela frente para fazer isso acontecer.

Feliz 2020!

Por Eduardo Felipe Matias. É sócio de Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados, Doutor em Direito Internacional pela USP, duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti com os livros “A Humanidade contra as cordas: a luta da sociedade global pela sustentabilidade” e “A humanidade e suas fronteiras: do Estado soberano à sociedade global”.

Via CONJUR