A propósito de rodada de negociações da OMC

Neste importante texto, o presidente da Bolívia, Evo Morales, denuncia a postura dos países desenvolvidos e do presidente da Organização Mundial de Comércio, Pascal Lamy, na recente Rodada de negociações da OMC, e apresenta uma série de medidas que poderiam levar a um comércio mundial mais justo, levando em conta as assimetrias entre as nações, a realidade e o futuro do mundo e da humanidade. Embora tenha sido escrito pouco antes do colapso das negociações em Genebra o texto é muito esclarecedor sobre o que estava em jogo na rodada e por esta razão reproduzimos o artigo em nosso portal.

“O comércio internacional pode desempenhar uma função de importância na promoção do desenvolvimento econômico e no alívio da pobreza. 

Reconhecemos a necessidade de todos os nossos povos se beneficiarem do aumento de oportunidades e dos avanços de bem-estar criados pelo sistema multilateral de comércio. A maioria dos membros da OMC é constituída por países em desenvolvimento. Pretendemos colocar as suas necessidades e interesses no centro do Programa de Trabalho adotado na presente Declaração.” 

(Declaração Ministerial de 
Doha da Organização Mundial de Comércio, de 14 de Novembro de 2001)
 

Com estas palavras começou a ronda de negociações da OMC há sete anos. Será que, realmente, o desenvolvimento econômico, o alívio da pobreza, as necessidades de todos os nossos povos, o aumento de oportunidades para os países em desenvolvimento estão no centro das atuais negociações na OMC? 

O que quero dizer em primeiro lugar é que se fosse assim os 153 países membros e, sobretudo, a ampla maioria de países em desenvolvimento deveriam ser os principais atores das negociações da OMC. Mas o que vemos é que uma mão-cheia de 35 países é convidada pelo diretor-geral para reuniões informais com vista a um substancial avanço na negociação e preparação dos acordos desta “Rodada para o desenvolvimento da OMC”.

Luta entre ricos e pobres

As negociações na OMC converteram-se numa luta dos países desenvolvidos para abrir os mercados dos países em desenvolvimento a favor das suas grandes empresas. 

Os subsídios agrícolas do norte, que vão principalmente para as mãos das empresas agro-alimentares dos EUA e da Europa, não só continuaram como se incrementaram, como o demonstra a Lei Agrícola dos Estados Unidos, o Farm Bill 2008 [1]. Os países em desenvolvimento baixaram os impostos aduaneiros dos produtos agrícolas, enquanto os subsídios reais [2] aplicados pelos EUA ou pela UE aos seus produtos não diminuíram. 

Prejuízos

No que respeita aos produtores industriais nas negociações da OMC exige-se que os países em desenvolvimento cortem os seus impostos alfandegários entre 40% e 60%, enquanto os países desenvolvidos diminuirão os seus entre 25% e 33%. 

Para países como a Bolívia, a erosão dos impostos alfandegárias, pela sua diminuição generalizada, terá efeitos negativos na competitividade das nossas exportações.

O reconhecimento das assimetrias, e o tratamento especial e diferenciado, real e efetivo, a favor dos países em desenvolvimento é limitado e torpedeada a sua implementação pelos países desenvolvidos.

Privatização dos serviços

Nas negociações força-se a liberalização de novos setores de serviços pelos diversos países, quando o que haveria a fazer era excluir definitivamente os serviços básicos de educação, saúde, água, energia e telecomunicações do texto do Acordo Geral de Comércio de Serviços da OMC. Estes serviços são direitos humanos que não podem ser objeto de negócio privado e de regras de liberalização que levam à sua privatização. 

A desregulamentação e privatização dos serviços financeiros, entre outros, são a causa da atual crise financeira mundial. Uma maior liberalização dos serviços não trará maior desenvolvimento, mas maiores possibilidades de crise e especulação em temas vitais como os alimentos.

Transnacionais beneficiadas 

O regime de propriedade intelectual estabelecido pela OMC beneficiou sobretudo as transnacionais que monopolizam as patentes, encarecendo o preço dos medicamentos e de outros produtos essenciais, incentivando a privatização e a mercantilização da própria vida, como o provam as várias patentes sobre plantas, animais e, inclusive, genes humanos. 

Os países mais pobres serão os principais perdedores. As projeções econômicas de um potencial acordo da OMC, inclusive as feitas pelo Banco Mundial [3], indicam que os custos acumulados pela perda de empregos, as restrições à definição de políticas nacionais e a perda de receitas aduaneiras serão maiores que os “benefícios” da “Rodada para o desenvolvimento”. 

Após sete anos, a rodada da OMC está agarrada ao passado e desatualizada dos fenômenos mais importantes que estamos a viver: a crise alimentar, a crise energética, a mudança climática e a eliminação da diversidade cultural. Querem fazer crer ao mundo que se necessita de um acordo para resolver uma agenda mundial, mas este acordo não reflete essa necessidade. As suas bases não são as adequadas para resistir a esta nova agenda mundial. 

Estudos da FAO sublinham que com as atuais forças de produção agrícola é possível alimentar 12.000 milhões de seres humanos, isto é, quase o dobro da atual população mundial. No entanto, há uma crise alimentar, porque não se produz para o bem-estar humano, mas para satisfazer o mercado, a especulação e propiciar rentabilidade às grandes empresas produtoras e comercializadoras de alimentos. Para enfrentar a crise alimentar é necessário fortalecer a agricultura familiar, camponesa e comunitária. Nós, países em desenvolvimento, temos de recuperar o direito à regulamentação [4] das importações e exportações para garantir a alimentação das nossas populações. 

Temos que acabar com o consumismo, o esbanjamento e o luxo. Na parte mais pobre do planeta morrem de fome todos os anos milhões de seres humanos. Na parte mais rica do planeta gastam-se milhões de dólares a combater a obesidade. Consumimos em excesso, desbaratamos os recursos naturais e produzimos lixo que contamina a Mãe Terra.

Produção local

Os países devem dar prioridade ao que produzem localmente. Um produto que percorre metade do mundo para chegar ao seu destino pode ser mais barato que outro que se produz nacionalmente. mas se levarmos em conta os custos ambientais do transporte da dita mercadoria, o consumo de energia e a quantidade de emissões de carbono que provoca, então podemos chegar à conclusão que é mais sadio para o planeta e para a humanidade priorizar o consumo do que se produz localmente.

O comércio exterior deve ser um complemento da produção local. De forma alguma podemos privilegiar o mercado externo à custa da produção nacional. O capitalismo quer nos uniformizar a todos para nos transformar em simples consumidores. Para o Norte só há um modelo de desenvolvimento, o seu. 

Os modelos únicos a nível econômico vêm acompanhados de processos de aculturação generalizada para nos imporem uma só cultura, uma só moda, uma só forma de pensar e de ver as coisas. Destruir uma cultura, atentar contra a identidade de um povo é o dano mais grave que se pode fazer à humanidade. 

O respeito e a complementaridade pacífica e harmônica das diversas culturas e economias é essencial para salvar o planeta, a humanidade e a vida. Para que esta seja uma rodada de negociações efetivamente de desenvolvimento e ancorada no presente e no futuro da humanidade e do planeta deveria: 

• Garantir a participação dos países em desenvolvimento em todas as reuniões da OMC, pondo fim às reuniões da «sala verde» [5].

• Implementar verdadeiras negociações assimétricas a favor dos países em desenvolvimento, nas quais os países desenvolvidos devem fazer concessões efetivas.

• Respeitar os interesses dos países em desenvolvimento não limitando a sua capacidade de definição e implementação de políticas nacionais a nível agrícola, industrial e de serviços.

• Reduzir efetivamente as medidas protecionistas e os subsídios dos países desenvolvidos [6].

• Assegurar o direito dos países em desenvolvimento a proteger, pelo tempo que seja necessário, as suas indústrias nascentes, da mesma forma que o fizeram no passado os países industrializados.

• Garantir o direito dos países em desenvolvimento a regular e definir as suas políticas em matéria de serviços, excluindo de forma expressa os serviços básicos do Acordo Geral de Comércio de Serviços da OMC.

• Limitar os monopólios das grandes empresas sobre a propriedade intelectual, promover a transferência de tecnologia e proibir as patentes sobre qualquer forma de vida.

• Garantir a soberania alimentar dos países, eliminando qualquer limitação à capacidade dos Estados a regular as exportações e importações de alimentos.

• Assumir medidas que contribuam para a limitação do consumismo, o desbaratar de recursos naturais, a eliminação de gases de efeito invernadouro e a geração de lixo que danifique a Mãe Terra.
 
No século XXI, uma «Ronda para o desenvolvimento» já não pode ser de «livre comércio», mas tem que promover um comércio que contribua para o equilíbrio entre os países, as regiões e com a Mãe Natureza, estabelecendo indicadores que permitam valorizar e corrigir as regras de comércio em função do desenvolvimento sustentável.
 
Nós, os governos, temos uma enorme responsabilidade para com os nossos povos. Acordos como os da OMC têm que ser amplamente conhecidos e debatidos por todos os cidadãos e não somente por ministros, empresários e «peritos». Nós, os povos do mundo, temos que deixar de ser vítimas passivas destas negociações e converter-nos em protagonistas do nosso presente e futuro.
 
Notas:

[1] O “Farm Bill 2008” foi aprovado em 22 de Maio pelo Congresso dos Estados Unidos da América. Autoriza gastos que incluem subsídios à agricultura até 307 bilhões de dólares em 5 anos. Destes, aproximadamente 208 bilhões de dólares poderão ser gastos em programas de alimentação. 

[2] O atual texto sobre agricultura propõe baixar os subsídios dos EUA entre 13 e 16,4 bilhões de dólares anuais. No entanto, os subsídios reais que os EUA desembolsam são de aproximadamente 7 bilhões de dólares anuais. Por outro lado, a União Européia apresenta nas negociações da OMC reforma da sua Política Agrícola Comum (PAC) feita em 2003, sem propor quaisquer aberturas.

[3] Os países em desenvolvimento têm pouco a ganhar na Rodada de Doha: os ganhos projetados serão de 0,2% para os ditos países, a redução da pobreza mundial será de 2,5 milhões (menos de 1% dos pobres do mundo) e as perdas por impostos aduaneiros não cobrados serão de pelo menos 63 bilhões de dólares. (Anderson, Martin and van der Mensbrugghe, “Market and Welfare Impplications of Doha Reform Scenarios“, in Agricultural Trade Reform and the Doha Development Agenda, Anderson
and Martin, World Bank/ / Back to the Drawing Board: No Basis for Concluding the Doha Round of Negotiations” by Kevin P. Gallagher and Timothy A. Wise, RIS Policy Brief #36.

[4] Esta regulação deve incluir o direito a implementar impostos às exportações, baixar os direitos aduaneiros para favorecer as importações, proibir as exportações, subsidiar produções locais, estabelecer faixas de preços, enfim toda e qualquer medida que, de acordo com a realidade de cada país, melhor sirva o propósito de garantir a alimentação da população.

[5] “Green room meeting” ou «reuniões na sala verde» é o nome das reuniões informais de negociação da OMC, em que participa um grupo de 35 países escolhidos pelo diretor-geral.

[6] Um corte real dos subsídios dos EUA deveria ser menor que 7 bilhões de dólares por ano. 

*Presidente da Bolívia 

Intertítulos do PortalCTB. O texto foi extraído do sítio Odiario.info

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