A primeira vacina

Davi Seremramiwe Xavante, de 8 anos, da tribo Xavante, foi a primeira criança a receber a primeira dose da vacina contra Covid-19 — Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Estadão conteúdo
Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Estadão conteúdo

Por Rubens Vaz Ianelli*

A primeira criança a tomar a vacina contra a covid-19 no Brasil, foi Davi Seremramiwe, um belo menino Xavante de oito anos de idade. Na foto, lá estava ele, cabelo cortado certinho, subindo em arco das orelhas para a testa e caindo reto pelas laterais. Olhos firmes, impávidos, mirando à frente, sem quase reação, distante, pensando em seu povo, em sua aldeia, em seus amigos e na família, um simples jeito de estar no mundo. Após a vacinação declarou – Estou tomando a vacina pela minha aldeia –, e a consciência coletiva transbordou de forma tão natural da boca daquele menino. O fato ocorreu no dia 14 de janeiro.  

Ele não imaginava que ocupava o lugar de um interlocutor entre o Sistema Único de Saúde – SUS e a coletividade, revelando breve retrato da grandeza do nosso sistema de saúde. Se, de um lado, ao receber a vacina ele foi atendido pela medicina primária, de outro, foi pela medicina terciária, mais especializada, através do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde segue em tratamento médico. Duas pontas do robusto SUS, um sistema de saúde pública exemplar, dos mais avançados na sociedade moderna.

Ao fazer sua declaração, o menino teve presença de espírito, talvez porque aprendeu assim através das gerações dos Xavante que vêm transmitindo uns aos outros suas práticas culturais e sociais tradicionais. A visão de dois mundos que eles aprendem desde cedo para facilitar o comportamento frente à sociedade envolvente. E este sentimento de pertencimento de um povo é que deu a ele a tranquilidade para se expressar.

De certo, o preocupar-se com sua aldeia tinha a ver não só com a saúde coletiva de seus parentes. É provável que haja um inconsciente coletivo dos próprios Xavante, registrado a partir das grandes epidemias, sobretudo as de gripe e de sarampo, que colocaram alguns de seus grupos à beira da extinção. A tragédia das epidemias no Vale do Araguaia, ou Vale dos Esquecidos, só foi estancada a partir das campanhas de vacinação. O menino tomou a vacina de forma tão serena porque sabia que seu povo já tinha sido salvo pelas vacinas, e sabia que o coronavírus já havia entrado em sua aldeia e infectado várias pessoas.

Davi Seremramiwe é filho do Jurandir Siridiwê Xavante, hoje, cacique da grande aldeia Etenhiritipá, com cerca de seiscentos habitantes. Na minha época como médico sanitarista, em 1995, a aldeia era menor, tinha em torno de quatrocentas pessoas. O cacique era o Tsuptó, bom orador, como convém a um líder Xavante, sereno, mas firme, bastante atuante quando era para defender a saúde na aldeia. Tanto Tsuptó como Siridiwê são excelentes embaixadores de seu povo e simpáticos a uma parceria com a ciência.

Tsupó, quando cacique, abriu as portas da aldeia para pesquisadores da Fiocruz, que fizeram um trabalho relevante, notadamente na área da nutrição. Os pesquisadores revelaram uma mudança no padrão epidemiológico dos Xavante da terra indígena Pimentel Barbosa, ao constatarem o surgimento de doenças como diabetes e hipertensão arterial, antes não detectadas neste povo. A descoberta levou a um movimento de resgate da alimentação tradicional e à redução do consumo de alimentos industrializados ou introduzidos com maior intensidade a partir de 1997.

Esses líderes Xavante, além da sagacidade política, têm uma característica comum que é a arte de falar manso sem deixar de expressar tudo aquilo que têm para dizer. Nos diálogos, observei que eles sempre mantinham um sorriso e isso absorvia minha atenção. Reparava as proeminentes e fortes maçãs de seus rostos, talvez um traço asiático, que me levava a exercitar o sorriso para ter meu rosto mais altivo como os deles.

Quando voltava da aldeia, as maçãs do meu rosto talvez estivessem um pouco mais à vista. É que quando havia a convivência com eles, o sorriso vivia em nós, estampado quase todo o tempo. Ali, tão próximos da alegria, caminhávamos entre pinturas rupestres e cachoeiras até chegarmos ao rio das Mortes, em meio ao cerrado do Mato Grosso, no coração do Brasil.

*Médico e artista plástico, conviveu com os Xavanti durante anos no Mato Grosso