A pátria de chuteiras descalçadas

Já se disse alhures que futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes da vida. Todavia, em pesquisa recente, 53% dos brasileiros disseram não estar interessados na Copa. No país do futebol, a persistência da crise econômica e o desemprego, aliado ao calamitoso quadro político instituído desde o golpe, contribuem para o descrédito no evento esportivo mais importante do planeta. Parece que estamos distantes da euforia generalizada de outros tempos em que a seleção canarinho empolgava desde a primeira partida, apesar dos males que nos afligiam fora de campo.

Futebol e política sempre se misturaram, então o problema não é tanto o baixo astral de vivermos sob o governo mais impopular da história. Torcemos desesperadamente por Pelé e Jairzinho na Copa de 70, apesar do afastamento de João Saldanha por pressão de uma ditadura que vivia sua fase mais perversa; permanecemos na torcida como “120 milhões em ação” em 74 e em 78 saímos invictos do torneio e como campeões morais, como se o Brasil de Geisel tivesse condições de oferecer lição de moral à alguém. Em 82, apesar da inflação galopante e da corrupção desenfreada nos estertores da ditadura, a Seleção de Telê encantou o mundo e o Doutor Sócrates ainda dava show fora de campo, com seus posicionamentos em favor da democracia. Vivemos tempos bicudos, mas nunca antes na história deste país a Copa foi tão pouco importante.

É verdade que a empolgação cresceu desde o primeiro jogo da Seleção, apesar de não se verem, nas ruas, muitas camisas canarinhos como outrora. O fato da amarelinha ter sido um dos símbolos do golpe, cobra um preço alto. O Brasil que havia vivido as Jornadas de Junho de 2013, nas imediações da Copa das Confederações, e que dizia não admitir estádios padrões FIFA ao lado de escolas e hospitais caindo aos pedaços, foi derrotado pelas direitas e pelo golpe de 2016.
Depois da humilhação dos 7×1 frente a Alemanha, o que se viu foi digno de destruir qualquer autoestima, pois o golpe parlamentar-jurídico-midiático, ancorado em manifestações contra a corrupção que envergavam a camisa verde-e-amarela e tinham no pato da Fiesp um dos seus símbolos máximos, fez retornar o nosso complexo de vira-latas, principalmente porque em termos de corrupção não há nada que se compare ao atual governo.

O mais provável, contudo, é que a Copa e a Seleção voltem a animar o brasileiro, em que pese o futebol burocrático da estreia. Em 1958, antes de ganharmos a Copa, Nelson Rodrigues, que primeiro falou sobre o nosso complexo de vira-latas, disse que o Brasil vacilava entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Vencemos e de quebra entramos nos anos 1960 com esperanças renovadas. Quiçá algumas vitórias em campo nos tornem capazes de vingar as derrotas na vida, inclusive a do golpe, que quase sepulta a nossa maior paixão.

Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento de História da UFBA. Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde, de 22/06/2018.

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