A CTB e a América Latina

Uma das formas mais usadas para se falar vulgarmente sobre marxismo é associá-lo ao autoritarismo, como foi o caso da recente overdose de vulgaridades pronunciadas quando o comandante Fidel Castro anunciou que não se candidataria à reeleição presidencial em Cuba. O marxismo mais uma vez foi mostrado como um sinistro desígnio contra a criatura humana. A ”revolução” foi associada a rios de sangue, fuzilamentos e às maiores atrocidades de que são vítimas especialmente as crianças e os inocentes. Lemos e ouvimos, à exaustão, que este “último reduto do marxismo no Ocidente” estava com os dias contados.

Ao lado deste antimarxismo primitivo, outras vulgaridades mais sofisticadas tentaram demonstrar a entrada de Cuba em uma nova dinâmica política. Há os que, de boa fé, proclamam a “verdade revolucionária” com base em suas percepções empíricas — o ativista voluntarista, que valoriza o que ele chama de “popular” porque a “verdade revolucionária” estaria implícita nas demandas sociais. E há também aquele “marxista” impregnado de erudição e afogado em terminologia complicada, um especialista em obscurecer os problemas. Falta clareza para ele chegar às situações concretas, talvez como defesa para não se comprometer.

A clássica tentaviva de desmoralizar Hugo Chávez

Estes fenômenos estão muito presentes atualmente na América Latina. É possível imaginar que isso se deve à singularidade do processo de mudança pelo qual passa a região. Vivemos uma época marcada por condições políticas capazes de resgatar o ideal libertador de Simón Bolívar, que tem como epicentros a revolução cubana e a “revolução bolivariana” liderada pelo presidente Hugo Chávez na Venezuela. Como a revolução francesa para a história do século XIX, as revoluções cubana e venezuelana são o norte para a luta histórica dos povos da região.

Há, evidentemente, formas e formas de negar a importância destes processos de mudanças. A forma mais vulgar pode ser sintetizada na versão da conhecida “comentarista” da rádio “CBN” Mirian Leitão, que se vangloria de já ter sido “revolucionária”. Ela disse recentemente que ninguém sabe o que é “revolução bolivariana”. “Só Chávez sabe”, atestou, para sentenciar que o discurso do presidente venezuelano é “típico de uma velha esquerda, uma retórica vazia”. É evidente que na tentativa de desmoralizar Chávez, ela se desmoraliza com sua formulação tosca e medíocre. Há formulações mais sofisticados, porém igualmente falsas.

A vulgaridade sobre a liberdade de imprensa

Na mesma linha de tentar grosseiramente vulgarizar o socialismo ao analisar a “transição” cubana, em dois artigos no jornal “Folha de S.Paulo”, nos dia 9 e 23 de fevereiro de 2008, um tal Antônio Cícero quis demonstrar “o papel da ideologia marxista-leninista” como o mesmo que a religião católica havia tido durante a era do feudalismo. “Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar”, garante.

A vulgaridade é tanta que ele chega ao ponto de afirmar que ”o modo de produção capitalista (…) é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade”. “Sendo assim, ele (o capitalismo) é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa”, decreta. “É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista (…), em que (…) torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo”, sentencia.

Análise superficial de certas tendências de esquerda

Outro vulgarizador da mesma estirpe que pegou a onda da ”transição” em Cuba é o senador Jefferson Peres (PDT-AM). Em artigo na mesma “Folha de S. Paulo” no dia 7 de março de 2008, ele afirmou que o marxismo rotulou o capitalismo como “o modelo vigente no mundo real”. “A análise marxista, excessivamente reducionista, foi parcialmente correta no diagnóstico, falha na terapia e um grande fiasco no prognóstico”, escreveu. “O grande erro de Marx — incompreensível num pensador dialético — foi imaginar que o capitalismo permaneceria imutável, apenas agravado em seus defeitos, na forma de aumento da concentração da riqueza e crescente pauperização do trabalhador”, ensinou.

Há ainda as incompreenções sobre a importância da idéia revolucionária na América Latina que aparecem nas análises superficiais que certas tendências políticas progressistas fazem dos movimentos estratégicos encetados como parte destes processos de mudança. Um texto produzido pelo secretário nacional de Política Sindical da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas, como “parte das ações da Secretaria de Política Sindical” cutista “para o debate”, por exemplo, ignora completamente a essência da fundação da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

A fixação fanática dos grupos ”esquerdistas”

A síntese de sua opinião sobre a CTB está na afirmação de que, “como as posições do PCdoB não tinham repercussão na CUT, a alternativa encontrada foi aproveitar o momento de legalização das centrais para criar sua própria central sindical” e, assim, “além de divulgar no movimento sindical as posições do partido em nível nacional e internacional” ter “ainda recursos financeiros, o que não acontecia antes”. É mais uma vulgarização evidente do marxismo, que tenta desqualificar a política democrática do PCdoB e a independência da CTB — atestada pela sua pluralidade.

E há também os grupos “esquerdistas”, para os quais o anticomunismo de “esquerda” tornou-se uma fixação fanática, um preconceito inextirpável. As amplas e novas alianças, tão necessárias atualmente à América Latina para a construção passo a passo do seu caminho para o futuro, são o principal alvo dos ataques perpetrados por estes grupos. A presunção de infalibilidade é, por sua própria natureza, uma prova de incapacidade teórica para a compreensão dos percalços que inevitavelmente surgem na condução dos complexos processos sociais. Nada melhor do que a definição de Lênin para estes grupos: o extremismo é filho de erros oportunistas.

A essência revolucionária do marxismo

O primeiro foco de explicação para essa antipatia ao marxismo reside no fato de existir uma indiferença em relação à sua alma — na definição do mesmo Lênin —, a dialética. A dificuldade está em procurar compreendê-lo com espírito científico, isento de paixões e sem a carga irracional de ódio, herdada em boa parte de preconceitos incutidos por anos de anticomunismo. Mesmo quando ele não é excluído da categoria de fenômeno social — o marxismo é ensinado até nas universidades norte-americanas —, procuram a todo custo destituí-lo de sua alma. É assim que os espíritos se fecham ao seu conhecimento, possivelmente com medo de a ele se converter.

Outra resposta a esse foco de crítica ao marxismo passa pelo esclarecimento de que para compreendê-lo é preciso compreender a sua essência revolucionária. Revolução não é outra coisa senão o reajustamento dos quadros institucionais de um país, de modo a atender mais satisfatoriamente às necessidades da sociedade. E se isso acontece é porque as formas que se procura modificar já não correspondem às demandas do convívio coletivo. O reajustamento do poder é um processo revolucionário longo. A Revolução Francesa, por exemplo — que nem era marxista —, não se limitou à tomada da Bastilha. Ela prosseguiu na forma de uma série de reformas políticas, sociais e econômicas que se realizaram até que se completasse a modificação da estrutura da sociedade.

A essência dos marxistas que atuam na CTB

O desenvolvimento do processo revolucionário também não implica inevitavelmente em uso da violência, em insurreição. Aliás, a história demonstra que são precisamente os interessados em manter um sistema social já inadequado os primeiros a recorrer à violência para continuarem no poder. Estes sim precisam de golpes e de guerras para afogar descontentamentos e revoltas. Em síntese: a compreensão da essência revolucionária do marxismo nada mais é do que o exame e a interpretação do processo histórico e da realidade social dele derivada.

Neste exame e interpretação, busca-se soluções para os problemas — o que não significa outra coisa senão a abertura de perspectivas para um futuro menos incerto e mais promissor. Essa essência revolucionária pode ser observada, por exemplo, quando se interpreta a configuração estratégica da fundação da CTB. Guiados pelos princípios fundamentais da luta revolucionária — a análise concreta da realidade concreta —, os marxistas que atuam nesta central entendem que a essência da tática está na leitura real da correlação de forças em cada momento. Se a realidade mudou, mudemos a tática.

Pensar é apreender os fatos pelo pensamento

A compreensão desta essência revolucionária implica também em compreender que podem surgir contradições entre a ordem das coisas (o programa político) e a força das coisas. O revolucionário francês Saint-Just, que ficou conhecido pela publicação do livro “O Espírito da Revolução e da Constituição da França” — no qual ele considerava a morte do rei como necessária à estabilidade do novo regime — dizia: “Talvez nos leve a força das coisas a resultados que não imaginávamos.” Trocando em miúdos: para compreender a realidade, é preciso pensar a realidade.

Pensar é apreender os fatos pelo pensamento e compreendê-los como processo em contradição — a mola do movimento real das coisas. Logo, se a realidade é dialética e se pensar é apreender a realidade, pensar é apreender dialeticamente os fatos. E o fato mais relevante para as forças progressistas latino-americanas, de uns dez anos atrás para cá, é o progresso da idéia de socialismo — um socialismo renovado, que está sendo inventado e que tende cada vez mais a não imitar os modelos do passado.

O marxismo não pode ser resumido a um modelo

Uma constatação disso é o enfrentamento de um dos problemas mais graves para os socialistas: o do Estado. O assunto merece um exame à parte, mas, em rápidas palavras, pode-se dizer que a construção de um poder alternativo está ocorrendo na América Latina ao mesmo tempo em que o Estado existente está em transformação. O objetivo de destruição da “máquina estatal” talvez seja um dos grandes dilemas que se apresentarão num futuro próximo para as forças revolucionárias latino-americanas. O problema do Estado é o problema da revolução.

O marxismo, independente do que dizem dele os já decrépitos “novos filósofos”, não pode evidentemente ser resumido a um modelo. Os bolcheviques de “têmpera especial” partiram a história em duas, abalaram o mundo, romperam pela primeira vez a estrutura e a lógica do capitalismo e do imperialismo — tomaram o céu de assalto, como dizia Karl Marx sobre os revolucionários da Comuna de Paris de 1871 —, mas foram marxistas do seu tempo. O desenvolvimento histórico obriga os marxistas a uma nova perspectiva revolucionária. E, com isso, a um novo posicionamento.

Galileu e as soluções para os problemas

Os fatos, portanto, não podem ser banidos da história para que prevaleça uma interpretação apressada dos acontecimentos. O problema é que o homem tende a só ver o que quer ver, só reconhece o que quer reconhecer. Questão de atitude mental. Ou, por outra, de condicionamento mental. Mas os fatos acabam mexendo com a sua mentalidade. Mexem tanto que, ao fim de certo tempo, ele, se é honesto, descobre que o condicionamento em que se encontra o leva a confundir coerência com irracionalidade, a tomar como verdadeiras posições baseadas só em seu ponto de vista.

Para ver o que salta aos olhos é preciso, muitas vezes, grande poder de imaginação e uma atitude crítica diante das correntes tradicionais de pensamento, diante de fórmulas tradicionais consagradas e petrificadas do exercício do raciocínio. Galileu, acossado pelos aristotélicos das universidades, disse que, para estes, filosofar não era outra coisa senão folhear os textos de Aristóteles — nos quais fatalmente seriam encontradas todas as soluções para todos os problemas.

Algo a aprender com os não-marxistas

No fogo da luta política, é compreensível o acirramento das posições que anula as nuances. Mas esta condição não abala a vitalidade intelectual do marxismo. E isto é válido dentro e fora dos partidos comunistas. A primeira conclusão que pode ser extraída deste fato é que a sua força não depende dos males elementares do capitalismo. Nem da idéia de um único movimento comunista mundial que, num certo período, atrofiou o pensamento marxista. Os comunistas concebiam o debate de idéias com os não-marxistas como um confronto para explicar o que fosse marxismo, para difundi-lo e propagá-lo — não como um exercício de evolução do pensamento. Não acreditavam absolutamente ter algo a aprender com os não-marxistas.

Mas uma conversa em que uma das duas partes está disposta a escutar e a outra não, não é diálogo. E este comportamento dos comunistas se refletia até nos termos em que se davam os confrontos. Falava-se em “batalha de idéias” e mesmo em “ciência burguesa” contra “ciência proletária”. Num crescendo sempre maior, todas as idéias que não fossem de Marx, de Engels e de Lênin, ou que contrastassem com tudo o que em algum “bloco socialista” era aceito e defendido, foram deixadas de lado. Falava-se mais frequentemente de “defesa do marxismo” do que do seu poder de transformação da realidade.

A discusão como caminho do progresso

É verdade que um certo número de ex-comunistas se tornaram também ex-marxistas e, na prática e na ocasião oportuna, antimarxistas. Este ciclo sempre termina assim. E isto parecia justificar o velho comportamento dos comunistas. Mas na realidade é impossível sustentar o princípio simplista de que há um socialismo “certo” somente na via pela qual o marxismo foi interpretado ao longo da maior parte do século XX. Isso não significa que não exista um marxismo “certo”. Só que ele não pode mais ser definido institucionalmente. E não é absolutamente fácil saber sempre, em qualquer circunstância, quando o seja — como se acreditava no passado.

Não se está aqui dizendo que nunca será possível chegar a uma conclusão sobre certos pontos, embora a discussão de determinados assuntos (não os mesmos de sempre) deva continuar ao infinito. O marxismo é um método científico. E, nas ciências, a discussão — entre pessoas que sustentam pontos de vista divergentes sobre bases científicas — é o único caminho permanente de progresso. Cada problema resolvido gerará outros para novas discussões. No momento atual, abrir questões para o debate é muito mais importante do que fechá-las. E, mais importante ainda, ao que perece, é, em lugar de definir o que não é marxismo — o que cedo ou tarde emergirá por si mesmo —, descobrir, ou redescobrir, o que é marxismo.

Ver a história tomando consciência dela 

Marx e Engels, no “Manifesto do Partido Comunista”, estavam bem longe de qualquer triunfalismo revolucionário. Eles disseram que a luta entre classes antagônicas de uma sociedade dilacerada — como é a sociedade capitalista — pode perfeitamente terminar “com a ruína das classes em luta”. Não há nenhuma “providência histórica” que garanta a vitória da classe revolucionária — aquela que poderia superar a contradição existente e recompor a sociedade. É possível sim ocorrer um período de barbárie moderna prolongado, embora não definitivo.

Mas a história, que parecia ter se distanciado da América Latina, retornou a ela. Isto demonstra que o marxismo não pode ser separado da política. Compreender esta unidade dialética é ver a história tomando consciência dela própria por meio da reflexão filosófica, do seu sentido social, dos seus vetores principais. Como a revolução russa de 1917 e a chinesa de 1949, que romperam estruturas opressivas, as mudanças que ocorrem na América Latina são um acontecimento vital para todos os povos da Terra. E assim elas devem ser interpretadas pelos marxistas.

 

*Jornalista, assessor de comunicação da CTB

 

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