A crise e a espoliação invisível das multinacionais

A crise econômica do capitalismo, irradiada dos EUA, deu seus primeiros e assustadores sinais no setor automobilístico brasileiro. As montadoras, todas multinacionais, às voltas com uma expressiva queda das vendas, decidiram conceder férias coletivas à maioria dos seus funcionários, iniciaram o processo de demissões e redobraram a ofensiva neoliberal para flexibilizar e reduzir direitos.

A Fiat, para citar um exemplo, quer impor banco de horas, redução de salários (com redução de jornada) e parcelamento do 13º Salário. Além disto, já demitiu algumas centenas de operários, segundo os sindicalistas. O fato, entre outros, atesta que, embora a crise seja provocada pelas contradições inerentes ao capitalismo (precisamente pela ganância da grande burguesia em busca do lucro máximo), é a classe trabalhadora quem acaba pagando a conta.

Remessas

Embora seja hoje mais forte nos centros do sistema imperialista do que em sua periferia, a crise costuma cobrar um preço adicional aos países mais pobres, economicamente dependentes. Infelizmente, apesar das aparências e de desejarmos o contrário, este ainda é o caso do Brasil, como se pode deduzir ao analisar o comportamento do capital estrangeiro investido na economia nacional. O exemplo das multinacionais do ramo automobilístico é eloqüente.

Somente entre janeiro a setembro deste ano, as montadoras enviaram do Brasil para suas matrizes no exterior a bagatela de 4,8 bilhões de dólares, a título de lucros e dividendos, contra US$ 1,7 bilhão no mesmo período do ano passado, configurando um aumento formidável, de 284%. O valor (ao câmbio atual) é mais de duas vezes maior que os recursos públicos liberados pelo governo federal para financiar a aquisição de automóveis (4 bilhões de reais). Só no mês de setembro as remessas das multinacionais do ramo somaram 753 milhões de dólares.

Pobres e remediados financiam os ricos

Em geral, essas grandes empresas andam mal das pernas em seus países de origem, ricos, perdulários e parasitas, onde acumulam notáveis prejuízos. Em países dependentes, como o nosso, ocorre o contrário. A taxa de exploração dos operários nos países capitalistas mais desenvolvidos é significativamente inferior à que se verifica em nações pobres e remediadas. Eles são relativamente melhor remunerados, o que não se explica pelas diferenças de produtividade. Por esta razão, os lucros auferidos na periferia são mais elevados e acabam sendo utilizados para financiar os países ricos.

A história das três anãs de Detroit (GM, Ford e Chrysler), às portas da falência em função da má administração, custos excessivos e péssimo desempenho nos Estados Unidos, é bem conhecida, mas não é única. A crise econômica disseminada pelo império piorou a situação, agravando o quadro de superprodução e excesso de capacidade instalada em todo o mundo.

Transferência de riquezas

O que ocorre em momentos como o que estamos vivendo nesses dias é que as empresas intensificam as remessas para o exterior do lucro gerado nos países mais pobres, lucro este que, conforme ensinou Karl Marx há mais de um século, nada mais é do que o resultado da mais-valia ou do trabalho excedente gerado pela classe trabalhadora e apropriado, privadamente, pelos capitalistas. Em outras palavras, temos aqui uma perversa transferência aos poderosos centros imperialistas de riquezas geradas no Brasil (sem qualquer contrapartida) para cobrir prejuízos nas matrizes.

O valor remetido pelas montadoras representa 24% de todas as remessas de lucros geradas no Brasil para o exterior, que somaram US$ 20,143 bilhões no acumulado do ano até setembro. O segundo ramo da indústria que mais remete mais-valia para fora é o de metalurgia, com US$ 2,985 bilhões no mesmo período, ou 14,8% do total.

Ajudar quem precisa

A expansão do capital no ramo automotivo foi notável ao longo dos últimos anos e atingiu seu pico em 2008, possibilitando um faturamento recorde até o momento em que os sinais do ciclo de produção foram invertidos, no decorrer deste último trimestre. Diante dos primeiros sinais de crise o governo federal se apressou a canalizar 4 bilhões de reais aos bancos das montadoras julgando que com isto lograria impedir a interrupção do crédito e das vendas. Pelo visto, este gesto de generosidade com as multinacionais não adiantou muito.

As empresas não titubearam em determinar férias coletivas, redobraram a ofensiva neoliberal para flexibilizar e reduzir direitos e iniciaram o processo de demissões em massa. Provavelmente os bilhões extraídos do erário teriam melhor resultado se a ajuda fosse direcionada sem intermediação a quem verdadeiramente precisa: a classe trabalhadora, que produz os valores econômicos ou a riqueza social sem uma retribuição à altura, viabilizando o lucro e a expansão do capital, e quando a crise se instala é descartada e despachada impiedosamente para o olho público.

Contrapartida

No documento encaminhado ao presidente da República e outras autoridades, as centrais sindicais exigem que a liberação de recursos públicos em benefício das empresas, realizada a pretexto de contornar a crise, seja condicionada à proteção dos trabalhadores, com estabilidade no emprego, redução da jornada sem redução de salários e outras iniciativas do gênero.
Entendem os sindicalistas, com toda razão, que sem contrapartida para o trabalho, não há justificativa aceitável para o resgate do capital em crise, pois o que efetivamente ocorre é a socialização dos prejuízos no interior de um sistema fundado na apropriação privada dos lucros provenientes do trabalho excedente.

Conta corrente

Isto transparece de forma nítida no ramo automobilístico. Aqui não temos apenas a apropriação privada dos lucros. Além disto, podemos observar, com indignação, a remessa destes para matrizes à beira da falência no exterior. Configura-se, portanto, uma dupla exploração do trabalho nacional. O problema não diz respeito apenas à classe operária. Os efeitos das remessas de lucros e dividendos sobre a economia nacional não devem ser menosprezados. Elas configuram uma espoliação invisível (ou não percebida pelo distingo público) da classe trabalhadora e da nação brasileira, conforme já argumentei em outros artigos.

A transferência de valores promovida pelas multinacionais constitui, atualmente, a principal causa do preocupante déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, que chegou a 26,6 bilhões de dólares nos 12 meses terminados em outubro passado. Convém lembrar que, em outubro, segundo estatísticas divulgadas pelo Banco Central, o balanço de pagamentos registrou um saldo negativo de 8,6 bilhões de dólares, refletindo a fuga de capitais estrangeiros.

A experiência indica que não se deve brincar com déficits em conta corrente e crises no balanço de pagamentos. Para evitar maiores problemas é indispensável tomar medidas corajosas, entre as quais cabe citar a necessidade de taxar e restringir as remessas de lucros e dividendos (isentas de tributação desde 1996, o que constitui mais uma indesejável herança neoliberal), controlar a conta de capitais e administrar o câmbio.

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