10 anos de uma monstruosa agressão imperialista

Reunimo-nos hoje para evocar fatos históricos, interpretá-los à luz da experiência e extrair as lições necessárias para orientar nossos esforços e nossas lutas pela paz, um novo mundo, governado pelo primado da justiça e da solidariedade.

Há dez anos, esta capital (Belgrado) e este país (Servia), que já foi um Estado socialista confederal, pluriétnico e plurinacional, foi vítima de um dos mais abjetos atentados à sua soberania, à sua unidade, à vida de seu povo, à sua economia e aos princípios fundamentais que inspiraram a sua própria constituição.

Durante 78 dias, a Iugoslávia foi vítima de uma monstruosa agressão militar. O escritor italiano e ativista do Movimento pela Paz Manlio Dinucci, descreve assim a tragédia que se abateu sobre o povo iugoslavo a partir daquele 24 de março de 1999:

“Decolando sobretudo das bases italianas, mil e cem aeronaves efetuaram 38 mil vôos, atirando 23 mil bombas e mísseis.75 por cento dos aviões e 90 por cento das bombas e dos mísseis foram fornecidos pelos Estados Unidos. Estadunidenses eram também a rede de comunicações,o comando, o controle e a inteligência através das quais as operações eram conduzidas.

Sistematicamente, os bombardeios desmantelaram a infraestrutura da Sérvia e de Kossovo, provocando vítimas sobretudo entre os civis. Entre outros, foram destruídos 63 pontes, 14 centrais elétricas, a refinaria  de Pancevo e Novi Sad, a fábrica automobilística Zastava e outras 40 indústrias, 100 centros de negócios, 13 aeroportos, 23 linhas e estações ferroviárias, 300 escolas, com um custo estimado em centenas de milhões de dólares. Os danos que derivam desses bombardeios para a saúde e o meio ambiente são incomensuráveis”.
 
Danos irreparáveis
  
  Podemos acrescentar: os ataques provocaram danos irreparáveis. Milhares de vidas humanas foram perdidas, outros milhares de pessoas ficaram feridas e mutiladas. Às obras de infraestrutura atingidas somam-se também monumentos, sítios arqueológicos, mosteiros e igrejas. Mais de dez estações de rádio e televisão e mais de vinte repetidoras de televisão foram atacadas, além da televisão estatal sérvia que os trabalhadores conseguiram recolocar no ar em poucas horas, numa singela demonstração da capacidade de resistência do povo.
    
     Ao rememorar fatos tão dolorosos, homenageamos o povo iugoslavo, exaltamos o valor dos seus heróis e inclinamos as nossas bandeiras de combate em reverência aos mártires da luta contra a agressão, a luta pela independência e pela unidade da Iugoslávia. Glória eterna a todos aqueles que, defendendo seu país, resistiram também em nome de toda a humanidade.

Falsos pretextos
 
     A guerra dos Estados Unidos e da OTAN contra a Iugoslávia, tal como todas as guerras recentes do imperialismo norte-americano e seus aliados contra povos e nações, foi feita com falsos pretextos e contou com a cumplicidade de uma gigantesca e poderosa máquina de mentiras e diversionismo – os meios de comunicação, que preparam o terreno com a difusão de textos e imagens sobre “violações de direitos humanos”, “limpeza étnica” e “insubordinação a tratados internacionais”. O motivo invocado para iniciar os bombardeios em 24 de março de 1999 foi a recusa do governo do presidente Milosevic a assinar o famigerado Acordo de Paz de Rambouilllet. O problema é que aquilo não era um acordo de paz, mas a decretação da morte da soberania nacional, porquanto implicava a ocupação de parte significativa do país por forças da OTAN. O então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, propunha na época a ocupação do Kossovo por tempo indeterminado pela OTAN, que manteria ali 30 mil soldados.

    Na verdade, os bombardeios de 1999 eram parte de uma estratégia global do imperialismo norte-americano no quadro dos esforços que esta potência realiza  para impor através da força e da militarização seu domínio sobre todo o planeta.
 
Agressão premeditada

     No que  se refere especificamente à Iugoslávia, era uma guerra de agressão premeditada há anos, no âmbito de um processo de desintegração da República Federativa Socialista da Iugoslávia, na sequência  da contrarrevolução que varreu o sistema socialista do mapa europeu a partir de finais dos anos 80 do século passado. Nessa preparação para os acontecimentos que se sucederam há dez anos não faltaram atos de espionagem por parte da CIA norte-americana e o financiamento e adestramento de grupos terroristas que hipocritamente os meios de comunicação apresentaram como forças de libertação nacional.
 
     A agressão, que veio a ser conhecida como a “Guerra do Kossovo”, faz parte de uma cadeia de acontecimentos que tem início em 1990 quando as potências imperialistas decidem investir recursos econômicos e empenhar sua força diplomática e militar no apoio ao que chamavam “novas formações democráticas da Iugoslávia”, estimulando assim os movimentos secessionistas. Começa o chamado efeito dominó na Iugoslávia. Primeiro a Croácia proclama sua separação em finais de 1990. Depois, em junho de 1991, a Eslovênia proclama-se independente. Ambos os processos resultam em confrontos militares nas duas  as repúblicas. Em face da guerra civil que começava a se alastrar, as potências imperialistas decidem acrescentar combustível ao fogo. Em dezembro de 1991 a Alemanha reconhece unilateralmente a Croácia e a Eslovênia como Estados independentes, sendo acompanhada dois meses depois pela então Europa dos 12.
    
Novo conceito estratégico  

  Em abril de 1992 abre-se nova frente de guerra, quando os Estados Unidos e a Comunidade Européia reconhecem a Bósnia-Herzegovina como Estado independente. Não quero aqui rememorar em detalhes o derramamento de sangue e a carnificina que tiveram lugar durante a guerra da Bósnia. Mas cumpre salientar que também neste conflito, tal como depois na guerra do Kossovo, a OTAN atuou como força agressiva. Uma atuação que passou à história como a primeira ação de guerra não motivada por um ataque a um dos seus membros e levada a efeito fora de sua área geográfica. Tratava-se assim da primeira experiência de aplicação do novo conceito estratégico da OTAN no pós-guerra fria.
 
     A Iugoslávia foi,  sob falsos pretextos, a vítima da aplicação de planos de dominação mundial no novo quadro pós-guerra fria. E rigorosamente, o país não havia cometido crime algum. Era um país soberano, membro de pleno direito da Organização das Nações Unidas, com suas instituições funcionando na normalidade. Um país que, malgrado dificuldades e eventuais erros na solução dos seus conflitos internos, empenhava-se em alcançar o progresso econômico e social e corrigir as imperfeições do seu sistema político tendo em vista alcançar a convivência harmônica entre as distintas nacionalidades que o compunham.
 
      O novo conceito estratégico adotado em 7 de novembro de 1991, quando os chefes de Estado e de governo dos 16 países que então integravam a OTAN reuniram-se  em Roma no Conselho Atlântico.  O documento aprovado por esses governantes dizia: “Contrariamente à ameaça predominante no passado, os riscos que permanecem para a segurança da Aliança não de natureza multiforme e multidirecional, coisa que os torna de difícil previsão e avaliação. As tensões poderiam – prossegue o documento – conduzir a crise danosas para a estabilidade européia e a conflitos armados que poderiam envolver potências externas ou expandir-se aos países da OTAN”. Por isso concluíram os chefes de Estado e de governo  dos países da OTAN – “a dimensão militar da nossa Aliança permanece um fator essencial, mas o fato novo é que esta dimensão militar estará mais do que nunca a serviço de um amplo conceito de segurança”.
 
Mutação genética  

  Este novo conceito estratégico seria oficializado em plena guerra contra a Iugoslávia, na reunião de cúpula da OTAN realizada em Washington de 23 a 25 de abril de 1999, onde a Aliança Atlântica passa a ser concebida em dimensões mais dilatadas, com capacidade para empreender novas missões, entre as quais o ativo empenho na gestão de crises, e com capacidade de dar respostas a essas crises. Como assinala o escritor italiano Manlio Dinucci, trata-se de uma “mutação genética” da OTAN. De uma aliança que obriga os países membros a ajudarem inclusive com a força armada o país membro que seja atacado na região do Atlântico norte, transforma-se em aliança que, com base no novo conceito estratégico obriga os países membros também a conduzirem operações de resposta às crises fora do território da Aliança.

     Ao completar 60 anos, e com esse novo conceito estratégico, a OTAN exacerba o caráter agressivo que lhe é próprio desde sua constituição, em 4 de abril de 1949. Uma das mentiras mais difundidas durante estas seis décadas é de que a OTAN foi  criada como mecanismo para neutralizar a ameaça de um ataque soviético à Europa Ocidental. Na verdade, a OTAN foi criada como parte do conjunto de instrumentos da política hegemonista estadunidense na Europa no imediato pós-segunda guerra mundial. Durante muitos anos representou a subordinação militar da Europa e sua instrumentalização na guerra fria. A OTAN era, como ainda é, o braço armado de uma política imperialista. Ela correspondia, desde a sua fundação à necessidade de eventual uso da força, num momento em que os Estados Unidos despontavam como a superpotência líder dos países capitalistas e estavam constituindo a ordem mundial moldada de acordo com os seus interesses.

     Agora, na cúpula que se realizará dentro de poucos dias em Estrasburgo, o novo conceito estratégico assume novos contornos. No quadro da cooperação e das rivalidades interimperialistas – sempre em prejuízo dos povos, da paz e da segurança internacional, anuncia-se uma integração ainda maior entre a União Européia, a OTAN e os Estados Unidos, o aumento das forças de rápida intervenção, a modernização das suas armas e o alargamento da sua esfera de atuação.
 
Lei do mais forte 

  Durante esta década que nos separa dos trágicos e dolorosos acontecimentos desencadeados em seu país a partir de 24 de março de 1999, a humanidade tem vivido novas, pesadas e graves turbulências. Ao longo deste período, a partir da guerra ao Afeganistão deflagrada em outubro de 2001 e da guerra ao Iraque em 2003, o mundo se tornou mais inseguro, os conflitos mais intensos, os direitos e as conquistas da civilização, fruto de tantos esforços e tantas lutas dos povos foram menoscabados. A Carta das Nações Unidas e o conjunto de normas consensuais do Direito Internacional foram violados e tornados letra morta. A guerra, o unilateralismo, a imposição da lei do mais forte tornaram-se no traço distintivo da chamada ordem internacional que atende não às aspirações dos povos e nações mas ao primado dos interesses do imperialismo norte-americano e de seus aliados.

 Em nome desses interesses os Estados Unidos usam os mais diferentes instrumentos militares, dentre os quais a OTAN é o principal, com sua profusão de bases militares, com suas centenas de milhares de tropas, com suas bases de lançamentos de mísseis, com suas armas nucleares, com sua Força de Resposta Imediata e seu escudo anti-mísseis em pleno coração da Europa. Uma OTAN mais forte e maior, que se expande para o Leste, mantém  tropas de ocupação e de agressão no Afeganistão, intervém nos conflitos do Cáspio e se torna um instrumento a mais na aplicação da política de reestruturação do Oriente Médio, apoiando Israel, com o qual mantém um acordo de segurança. Uma OTAN que numa situação de crise econômica e social em todo o mundo capitalista realiza despesas da ordem de cerca de 1 trilhão de dólares para agigantar a sua já colossal máquina de guerra.
 
Sinal de alerta 
   

O Conselho Mundial da Paz, que se encontra em processo de reafirmação dos seus valores e compromissos de luta, de reforço de sua identidade como organização pacifista, antiimperialista e solidária com todos os povos agredidos, vê com preocupação o atual desenrolar dos acontecimentos internacionais. A guerra continua na ordem do dia como meio  do imperialismo norte-americano para dominar o mundo, muito embora as esperanças do povo dos Estados Unidos manifestadas na última eleição presidencial. As recentes declarações do presidente dos Estados Unidos Barak Obama em discurso perante militares na Universidade Nacional de Defesa, em Washington, soam para as organizações que lutam pela Paz como um sinal de alerta de que, apesar das aparências, a inclinação do imperialismo para a guerra não se alterou. Eis o que disse o presidente Obama: “Não tenham dúvidas, este país vai manter seu domínio militar (…) Vamos ter as Forças Armadas mais fortes da história. Faremos o que for preciso para manter a vantagem”.

De nossa parte, não temos ilusões. Quando os chefes das principais potências imperialistas se reunirem dentro de dez dias para celebrar o 60º aniversário da fundação da OTAN, estarão elaborando novos planos de agressão aos povos. Nós, o Conselho Mundial da Paz, suas organizações nacionais e regionais e organizações e personalidades amigas, ao reunirmo-nos no transcurso do 10º aniversário dos bombardeios da OTAN contra a Iugoslávia, renovamos a nossa solidariedade e apontamos o caminho da luta contra o militarismo, as guerras de agressão, pela paz e a solidariedade entre os povos.
 
Viva o povo sérvio!
Abaixo a OTAN e o imperialismo norte-americano!
Viva a solidariedade entre os povos!

*Socorro Gomes é presidente do CMP (Conselho Mundial da Paz) e do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz). O texto reproduzido acima é o discurso que ela pronunciou em conferencia organizado pelo Fórum Belgrado por ocasião do 10º aniversário dos bombardeios da OTAN contra a Iuguslávia, evento que contou com a participação de delegações provenientes da Rússia e dos países do leste europeu, Portugal, Espanha e Grécia, além do embaixador do Brasil na Servia, Dante Coelho de Lima. EUA e América Latina foram representados pela Cebrapaz. Os intertítulos foram acrescentados pela redação do Portal CTB.

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