Omissão e ruína na floresta

A missionária Dorothy Stang caminhava na manhã de 12 de fevereiro de 2005 às margens de uma estrada da Amazônia quando foi abordada por dois pistoleiros. Ela estava sozinha. Mas não deveria.

Doti, como era conhecida, incomodava fazendeiros e recebia ameaças desde o início dos anos 2000. A americana de 73 anos, nascida em Dayton, Ohio, havia chegado ao Brasil em 1966 e batalhava pela criação de assentamentos que garantissem renda para famílias pobres, desde que elas preservassem a floresta. O modelo que Dorothy defendia, batizado de Projetos de Desenvolvimento Sustentável, os PDS, prosperou por uma década. Agora, eles correm o risco de colapso pela falta de apoio dos órgãos que têm a obrigação legal de protegê-los, num jogo de empurra-empurra infinito. E a situação piorou com o presidente Jair Bolsonaro, que vem desmontando os sistemas de proteção da floresta.

A filosofia da missionária ia contra a cultura do Pará profundo, uma região que atraiu fazendeiros que enxergam o desmatamento como única forma de prosperidade econômica. Árvores viram troncos valiosos; e o solo, campos de soja e gado. A missionária queria acabar com esse falso dilema dos fazendeiros — que hoje ocupam e tentam acabar com os PDS de Doti.

Interessados na terra, eles encontraram maneiras de invadir os terrenos, burlar a fiscalização e aparelhar órgãos do governo para desmatar. Parte desses fazendeiros são do grupo que ameaçava a missionária e que, no ano passado, denunciou o sucessor dela, padre Amaro José Lopes, preso por três meses após acusações que parecem levadas às autoridades apenas para calá-lo.

No dia 11 de fevereiro de 2005, véspera do encontro com os pistoleiros, Dorothy foi ao PDS Esperança, um dos que ela ajudou a criar. Lá, ela teria uma reunião com as famílias de assentados — o local fica às margens da Rodovia Transamazônica e hoje é reconhecido pela farta produção de cacau. A missionária deveria estar acompanhada de policiais e por servidores do Incra, o órgão responsável por administrar áreas do governo dedicadas à reforma agrária.

Na última hora, ninguém foi, e Dorothy decidiu ir mesmo assim à reunião.

Ela subiu na garupa de uma moto e enfrentou mais de 40 quilômetros de atoleiros típicos do inverno chuvoso da Amazônia para apoiar assentados assustados com as constantes ameaças de fazendeiros. Cruzou por imensas áreas devastadas pela pecuária até chegar a um trecho exuberante de floresta, onde fica o PDS Esperança.

A região vivia um momento de tensão. Dois meses antes, o governo havia determinado que fazendeiros que trabalhavam em áreas com mais de 100 hectares deveriam comprovar a posse da terra. A medida gerou a revolta dos fazendeiros, alguns deles “grileiros” — agricultores que possuem certidões falsas de propriedade de terras ou que não conseguem provar que são seus donos. Logo adiante, a decisão resultaria na cassação de centenas de títulos de posse — as terras, segundo a União, eram públicas.

No dia seguinte, Doti caminhava sozinha à beira da estrada quando, às 7h30, foi abordada por Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Batista, aliados de fazendeiros da região. A dupla questionou se a freira estava armada. Pressentindo o perigo, ela respondeu erguendo a Bíblia, sempre à mão. Doti começou a recitar trechos das bem-aventuranças. Sales ainda ouvia versos como “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” quando atirou seis vezes na missionária. Uma das balas acertou sua cabeça, e outras cinco furaram seu corpo magro, como confessou Sales perante a justiça. Ele e Batista foram condenados pelo assassinato.

Foi a primeira morte da irmã Dorothy, que se tornou o símbolo da luta pela reforma agrária e proteção da Amazônia.

O sonho da missionária

Quando Dorothy Stang foi assassinada, autoridades brasileiras estavam reunidas no Pará para a inauguração de uma das maiores reservas extrativistas da Amazônia, a Resex Verde para Sempre, em Porto de Moz. Era um dia de festa para os defensores da floresta. A ministra Marina Silva estava discursando quando parte da plateia começou a chorar e se abraçar. Padre Amaro Lopes, o braço direito de Doti, estava presente e caminhava de um lado ao outro. “A única coisa que pensava era que tudo estava acabado. Eles, os madeireiros, os grileiros, os fazendeiros, haviam vencido”, escreveu o então procurador Felício Pontes Jr., um dos maiores aliados de Doti na luta para a criação dos assentamentos. Entre 2000 e 2005, Doti e Pontes participaram de dezenas de reuniões para criar os PDS.

A missionária foi pioneira na popularização do conceito de sustentabilidade nos grotões da Amazônia. Desde os anos 1980, ela ensinava os trabalhadores a tirar seu sustento sem destruir a selva. Reunia lideranças femininas do campo, incentivava a organização dos assentados em coletivos e ensinava camponeses sem estudo formal a fazer o manejo florestal sustentável. Ela não se conformava em ver camponeses passando fome enquanto a União é a maior dona de terras do país, com áreas continentais sem uso ou ocupadas irregularmente. Os PDS, para ela, eram o caminho para garantir sustento às famílias e proteger o meio ambiente.

Freiras e padres da Comissão Pastoral da Terra, a CPT, a qual Dorothy Stang fazia parte, têm a função de fazer a interlocução entre os assentados e os servidores do Incra, Ibama e do Ministério Público, responsáveis por zelar e regularizar os PDS. Dorothy foi ameaçada dezenas de vezes por cumprir esse papel e não se dobrar diante das ameaças. Em um dos depoimentos à CPMI da Terra, em 2004, Dorothy disse:

“…sou ameaçada de morte, publicamente, por fazendeiros e grileiros de terras públicas. Tiveram a ousadia de ameaçar-me e pedir a minha expulsão de Anapu. Tudo isso só porque clamo por justiça. Agradeço a Deus esses anos riquíssimos de aprendizagem, amizade com o povo. Apaixonada sou pela sinceridade, partilha, hospitalidade, resistência, firmeza disponibilidade (desse povo)”.

A missionária era tão dedicada à causa que costumava abrigar as famílias na casa de madeira pintada de verde-água onde residia, ao lado da Igreja, em Anapu. Quando estava em busca da regularização dos PDS, Dorothy chegou a dormir nas dependências do Incra para pressionar por respostas, segundo relatos de servidores. Mesmo idosa, ia de ônibus para as reuniões em Belém, a 600 quilômetros de Anapu, e subia nas garupas de motos para acessar os recônditos da floresta. “Ela era incansável e não se deixava abater”, me disse a professora da Universidade Federal do Pará Noemi Miyasaka, que acompanhou a luta de Dorothy desde 1999.

O trabalho da missionária era urgente — e segue urgente — porque o Pará, cujo tamanho supera o do Texas e da Califórnia juntos, é campeão de desmatamento da maior floresta tropical do mundo. Não foi à toa que a missionária elegeu o estado para criar dois assentamentos, Virola-Jatobá e Esperança, que juntos somam uma área quase do tamanho de Salvador, com 67,3 mil hectares.

Os PDS de Dorothy são descritos por moradores locais como um cinturão verde em meio à devastação que avança sobre a Amazônia. “Eles são como uma espécie de portal que funciona como uma proteção. Se invadidos de modo definitivo, a floresta inteira vem abaixo”, me descreveu um morador local que pediu para não ser identificado por medo de ameaças.

A morte da missionária não foi em vão. Nos anos seguintes, a reboque da comoção internacional pelo seu assassinato, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tomou uma série de providências para acelerar a consolidação do legado de Dorothy. O assassinato foi o estopim para que começasse a ser enfrentado o antigo problema dos grileiros que, naquela época, dominavam 30 milhões de hectares somente no Pará.

A primeira medida foi a legalização dos PDS, o que permitiu que centenas de famílias ganhassem uma terra para trabalhar na Amazônia sem destruir a floresta. O PDS é autossustentável: cada camponês tem direito a 20 hectares onde pode cultivar grãos e verduras para a subsistência, e o restante da área é dividida em dois. Uma parte deve ser conservada como área de preservação permanente. A outra integra a reserva de proteção ambiental comunitária, onde é implementado um plano de corte de árvores que segue regras ambientais rígidas.

Infográfico: Estúdio Nono/The Intercept Brasil

O dinheiro da extração de árvores é revertido em renda para as famílias. Nos anos seguintes à morte de Dorothy, foram criados 111 PDS na Amazônia, em uma área de 3,4 milhões de hectares, pouco maior do que Alagoas. Com a regularização, as famílias de camponeses ganharam acesso às linhas de crédito e recursos do Fundo Amazônia, além de apoio do Incra e Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, para produzir sem danos à floresta.

No mês do assassinato de Dorothy, o governo também incorporou ao PDS Esperança a área onde Doti foi morta. A posse do terreno era reivindicada pelo fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, mais tarde condenado como mandante do crime — ele cumpre pena em regime semiaberto e é investigado pelo MPF por venda de serviço de segurança a fazendeiros.

Além de criar os assentamentos, a então ministra do Meio Ambiente Marina Silva lançou outras medidas. Demarcou cinco novas unidades de conservação, criou sistemas via satélite de alerta de desmatamento e enviou um projeto de gestão das florestas públicas para que fossem protegidas a despeito da mudança de governos. Deu certo. Em 13 anos desde o assassinato da missionária, as taxas de desmatamento na Amazônia caíram 72% até 2018, segundo dados do ministério do Meio Ambiente.

Por 12 anos, os PDS resistiram frente aos avanços de grileiros. O perigo, no entanto, sempre esteve presente: o Brasil segue líder em destruição de florestas segundo o World Resources Institute.

Em 15 de novembro de 2017, um bando de 200 invasores tomou conta do assentamento Virola-Jatobá.

E começou ali a segunda morte de Dorothy Stang.

Jogo político de empurra-empurra

Os agressores entraram na área do PDS em motos. Um relatório do Incra descreve o procedimento dos grileiros. Segundo o documento, eles invadiram o terreno por uma das divisas do assentamento, ao lado das terras dos fazendeiros João e Renato Cintra Cruz, acusados de ocupar e vender irregularmente áreas do PDS. Pai e filho são conhecidos do Incra desde 2016 — eles constam como réus no processo de reintegração de posse do Virola-Jatobá. A dupla teria vendido terras a invasores que chegavam do sul do Pará, de acordo com a acusação — procurei contatos da família Cruz ao longo da reportagem, mas não foi possível localizá-los. Apesar do histórico, o órgão não agiu.

Quase dois anos depois, grileiros e madeireiros seguem ameaçando assentados e retirando caminhões com toras de espécies valiosas como acapu, cumaru e angelim-vermelho durante as madrugadas.

Nesse período, o bando contratou topógrafos para delimitar mais de 200 lotes e iniciou o desmatamento para a formação de pastagens para o gado, o “quebradão” (cortam a árvore com motosserra e a arrastam com um cabo de aço até o trator). Invasores criaram uma entidade à parte, chamada de Associação Liberdade do Povo, enquanto se articulavam a madeireiros e grileiros interessados na floresta do Virola. A maioria teria interesse em negociar as terras, como revelam os contratos de compra e venda que constam no relatório do Incra.

O problema é antigo. Poucos anos depois da morte da missionária, madeireiros começaram a usar os assentamentos da Amazônia para esquentar o corte ilegal de árvores, deturpando o uso original dos PDS.

Uma investigação do Ministério Público Federal iniciada em 2007 levou à interdição de 106 projetos, que foram batizados de “assentamentos fantasmas”. A investigação constatou que vários deles não tinham licenciamento ambiental, estavam localizados em áreas de conservação ambiental ou beneficiavam madeireiros. Em muitos casos, a criação do assentamento ocorria com um ofício de três páginas, desconsiderando todos os trâmites legais e estudos envolvidos até chegar à fase da implantação.

Pouco a pouco, conforme denúncias nos PDSs e crises econômicas, fiscais e políticas foram se empilhando no Brasil ao longo da década de 2010, murchou o interesse do governo de Dilma Rousseff na reforma agrária. Mas o abandono se intensificou de modo mais explícito no governo de Michel Temer, quando ocorreu a invasão no Virola-Jatobá.

O caso é exemplar sobre a incompetência (e o descaso) do governo. Por duas vezes, a pedido da justiça, a Polícia Federal retirou os invasores. Eles retornaram, no entanto, prolongando uma novela que conta com a complacência do Incra, do Ibama, da PF e das forças de segurança estaduais e com a lentidão do Ministério Público Federal e do Judiciário — a frequente troca de procuradores e juízes na região gera interrupção de investigações e processos. “A atual situação é de completa falta de governança entre os órgãos, que parece proposital”, desabafou Roberto Porro, da Embrapa, incansável na defesa do Virola.

O dono formal da área é o Incra, que concedeu aos assentados o direito de uso. É dever do órgão defender o modelo criado por Dorothy Stang e buscar articulação com a polícia para cumprir as etapas de regularização e retirada dos invasores. Mas, em mais de 13 anos depois da criação do Virola, apenas 55 das 160 famílias estão com a situação em dia. “A regularização fundiária dos assentados é uma obrigação básica do Incra, mas que não é cumprida, sempre com diferentes alegações”, me disse Porro. Sem a concessão formalizada pelo Incra, os assentamentos viram alvo fácil de grileiros, e os camponeses não têm meios legais para se defender de quem quer roubar a terra.

Quando o bando invadiu o assentamento em novembro de 2017, o órgão sequer foi ao local. Com a inoperância do Incra sobre seu próprio patrimônio, os assentados decidiram então procurar a polícia de Anapu, que se negou a fazer um boletim de ocorrência alegando que a área é federal e, logo, estava fora da sua jurisdição.

Pela Constituição, a proteção ao meio ambiente é de responsabilidade de municípios, estados e governo federal — ou seja, todos deveriam atuar em conjunto para coibir crimes contra a floresta. Na prática, porém, essa articulação não funciona, e órgãos estaduais e federais acabam numa discussão eterna sobre quem deve agir primeiro, o que favorece os conflitos e os criminosos.

Os assentados do Virola tiveram de recorrer à Defensoria Pública do Pará, que fez uma artimanha jurídica para entrar com uma ação de reintegração de posse — o órgão considerou que o direito de uso dava aos assentados prerrogativa para exigir a devolução da área sem ter de esperar pela ação do Incra.

A procuradora Patrícia Xavier, que acompanhou o caso do Virola até novembro de 2018, me disse que se trata de uma ineficiência flagrante. “O Incra foi se tornando cada vez mais inerte. Não se justifica essa estrutura tal como está atendendo um dos municípios reconhecidamente mais conflituosos e violentos no campo”, afirmou.

A medida só fez o Incra acordar cinco meses depois, no final de março de 2018, quando entrou como co-autor do processo dos assentados. Em 28 de maio de 2018, a Justiça Federal expediu a primeira ordem de reintegração de posse. Foi quatro meses de reuniões e desencontros entre as forças policiais, MPF, Incra e a Embrapa, responsável por orientar o manejo sustentável do assentamento.

Quando policiais civis e federais, bombeiros e membros do MPF e do Incra finalmente entraram no PDS para cumprir a reintegração de posse e retirar os invasores, em 21 de setembro de 2018, a operação foi comemorada com troca de mensagens por WhatsApp. Mas a alegria durou pouco: eles encontraram um quadro desolador. As fotos tiradas no local mostram extensas áreas queimadas e árvores no chão.

justiça havia determinado que a polícia ficasse no local por um mês para evitar o retorno do bando. Os policiais não cumpriram o prazo, e, menos de dez dias depois, os mesmos invasores voltaram. O grupo ateou fogo na sede da Associação Virola-Jatobá, na entrada do PDS, e parte da madeira estocada usada para custear o assentamento foi consumida em chamas.

O pesquisador da Embrapa Roberto Porro iniciou as pressões mais uma vez e, em janeiro de 2019, a justiça emitiu uma nova ordem de reintegração de posse com pedido de policiamento de 30 dias, cumprida somente cinco meses depois, em maio. Desta vez, a Polícia Militar do Pará ficou 30 dias nas áreas em rondas diurnas. Mas foi insuficiente.

Um servidor do Incra informou em uma circular enviada ao Ibama e ao MPF em junho: “Estamos brincando de fazer a manutenção de posse e os madeireiros estão brincando que nos respeitam. As rondas da Polícia Militar são feitas durante o dia. Os madeireiros, nesse horário, estão dormindo! Quando saímos do PDS, ao final da tarde, eles são informados e, a partir daí, começam a retirar as madeiras”.

Entrei em contato duas vezes com a Secretaria de Segurança Pública do Pará a respeito da invasão. Na primeira vez, a assessoria de imprensa comunicou que a secretaria não cumpriria a reintegração de posse do assentamento porque não se tratava de uma ordem judicial, mas um pedido do MPF. Ela estava errada: não era um pedido, mas uma ordem judicial. Contestei a resposta e não obtive mais retorno. Na segunda vez, após um novo despacho da justiça, eles disseram estar aguardando manifestação do Incra.

Ativistas e pesquisadores ligados aos assentamentos atribuem a demora e o descaso ao aparelhamento político do Incra. Ser nomeado para o órgão é uma moeda valiosa porque a União é a maior latifundiária da Amazônia.

Durante o governo Temer, o Incra no Pará foi comandado por aliados do deputado federal Wladimir Costa, do Solidariedade, conhecido por tatuar o nome de Temer no braço às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff. É um político alinhado com o Brasil bolsonarista: na sessão que decidiu pelo impeachment de Dilma Rousseff, jogou confetes no plenário.

Natural do Pará, Wlad, como é chamado, teria pedido a exoneração de Danilo Hoodson, superintendente do Incra em Altamira desde 2013. Quando foi exonerado, em janeiro de 2017, a decisão foi comemorada efusivamente na sede do Siralta, o Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira. Entre 2017 e 2018, o servidor ficou entre Brasília e Cuiabá, distante de Anapu. Não por acaso, o Virola foi invadido nesse período.

Depois de conseguir a demissão de Hoodson, Wlad emplacou o irmão Mário Sérgio na superintendência do Incra de Santarém, além do amigo Alderley da Silva e o colega de partido Andrei Viana de Castro para a pasta em Altamira, responsável por Anapu. Silva e Castro até compareceram às reuniões sobre a invasão do Virola (cuja posse deveriam defender como representantes do Incra), mas não davam encaminhamento às ordens internas para o órgão liderar o reintegração de posse. “Parecia que não era com eles”, me disse Roberto Porro, pesquisador da Embrapa.

Na época da invasão, conversei com o então diretor de desenvolvimento do Incra, Ewerton Giovanni dos Santos, lotado em Brasília, quanto ao uso político do órgão no Pará. Ele desconversou. Na entrevista, reconheceu a responsabilidade do Incra sobre a situação, mas acreditava que a solução da invasão do Virola extrapolava a autoridade do instituto. “É um caso de segurança pública. Os servidores do Incra também são ameaçados”, me disse em dezembro de 2018.

Ironicamente, foi uma brecha na política de desmonte dos órgãos de controle do meio ambiente, uma promessa de campanha de Bolsonaro, que permitiu que o Incra agisse para proteger o Virola. Desde janeiro, o órgão ficou acéfalo nos estados — Bolsonaro demitiu os superintendentes e não nomeou ninguém por nove meses.

Com saída de Temer e dos aliados de Wlad no Incra, Hoodson aproveitou o vácuo e voltou às suas funções em Altamira, no início de 2019. Foi ele que mobilizou os funcionários de carreira do Incra para a defesa do assentamento neste ano, quando o órgão estava sem chefia indicada por Bolsonaro.

A justiça expediu um novo pedido de reintegração de posse em junho, ordenando que as forças policiais engrossassem a supervisão no Virola. Passaram-se mais dois meses de idas e vindas, até uma nova operação ser deflagrada em 22 de agosto. O Incra enfim retomava a posse do seu terreno.

Vinte dias depois da operação que retomou o Virola, talvez em resposta, Bolsonaro empossou um novo chefe do Incra de Altamira, que cuida de Anapu.

O aparelhamento político do Incra do Pará entrou na mira do Ministério Público Federal ainda no ano passado. Wladimir Costa e o irmão Mário Sérgio teriam sido flagrados distribuindo concessões individuais de terras de lotes dos PDS — o que é ilegal. “O Incra passou a ser um palanque eleitoral para promover o deputado Wladimir”, concluiu o MPF, que pediu a cassação dos direitos políticos de Wlad e o afastamento imediato do irmão do Incra, em uma ação assinada por 16 procuradores. Pouco depois, Mário Sérgio virou réu em processo criminal por prevaricação, peculato e falsidade ideológica. Wlad concorreu ao Senado nas últimas eleições, mas seus votos foram anulados após decisão do Tribunal Superior Eleitoral. Ele ficou sem mandato. Em 11 de novembro, Wlad e o irmão foram condenados pela justiça e perderam os poderes políticos por quatro anos. Eles ainda podem recorrer da decisão.

O padre ‘grileiro’

Enquanto os assentados tentavam chamar a atenção do Incra para a invasão no Virola-Jatobá, o sucessor de Dorothy Stang na defesa dos PDS, o padre Amaro José Lopes, era preso. Em 27 de março do ano passado, o líder religioso e ativista foi acusado de sete crimes – entre eles esbulho possessório, isto é, tomada ilegal de uma propriedade. A investigação partiu de uma denúncia feita por Silverio Albano Fernandes, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Anapu e irmão do fazendeiro Laudelino Délio Fernandes, apontado por dois indiciados como mandante do assassinato de Dorothy.

Advogado da CPT, José Batista Afonso afirma que acusar ativistas de crimes é o novo método dos fazendeiros para calar lideranças. A estratégia tem obtido sucesso.

A participação de Laudelino na morte da irmã nunca foi provada, mas o fazendeiro foi condenado por crimes ambientais e foi investigado por fraudes milionárias em projetos da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, criada pelo governo militar para “desenvolver” a região.

Antes de ser assassinada, Dorothy acusou Délio de se apropriar ilegalmente de três lotes de terras e o próprio Silverio de ameaçá-la. Em depoimento prestado em 28 de dezembro de 2002 na Polícia Federal, a missionária relatou que Silverio Fernandes havia lhe dado carona uma vez. Durante o percurso, o fazendeiro disse que não queria que ninguém invadisse suas terras ou “teria sangue até a canela”. “Em uma de minhas visitas, Dorothy me levou a um churrasco dos madeireiros e me apontou Délio, Silvério e Luciano Fernandes como principais antagonistas do PDS”, me disse a professora Noemi Miyasaka, da UFPA.

Em depoimento prestado à polícia em 4 de março de 2018, Silverio acusou o padre Amaro de chefiar uma organização criminosa que estaria por trás da ocupação da Fazenda Santa Maria, em Anapu, supostamente propriedade de um parente seu. A posse do lote de 3.100 hectares é reivindicada pelo fazendeiro, mas a justiça determinou que as terras voltassem para União para promover o assentamento de famílias – padre Amaro servia como um intermediário entre os camponeses e o MPF e o Incra.

Os advogados da CPT tiveram de recorrer aos tribunais superiores para conseguir um habeas corpus para soltar o padre Amaro. Ele está livre desde então, mas proibido de falar com os assentados e ir a encontros ou reuniões, que faziam parte do seu dia a dia como ativista do campo. “A visão da justiça local é de criminalizar movimentos sociais. Isso fica claro no despacho do juiz que indeferiu a soltura alegando que padre Amaro trazia risco à ordem pública por chefiar uma organização criminosa. Quem traz risco à ordem pública são seus acusadores”, me disse por telefone Afonso, que defende outros 20 ativistas que estão sendo processados por fazendeiros. “Se eu fiz alguma coisa de errado foi colocar a terra na mão do trabalhador para tirar sustento”, disse Amaro durante o evento de um premiação de direitos humanos no qual foi agraciado em dezembro de 2018.

Silverio, um fazendeiro poderoso na região de Anapu, discorda. Ele me disse por telefone que “padre Amaro é grande responsável pelas inúmeras invasões que ocorreram em Anapu”. “Desde que ele foi preso e impedido de se reunir, não teve mais invasões”, completou Silverio.

Falei por vídeo com Silverio quando as notícias dos incêndios na Amazônia estampavam as capas dos jornais nacionais e internacionais no final de agosto. Ele fez questão de mostrar que não havia fogo algum ao seu redor, mostrando um campo muito verde, mas sem árvores no horizonte. E usou argumentos semelhantes ao do presidente Jair Bolsonaro. Disse que o que ocorria na Amazônia era um “projeto de ONGs que querem colonizá-la só com índios”, “que as ONGs são as vilãs” e “tudo o que se vê na mídia é uma grande mentira.”

Por Silva Lisboa
Via The Intercept Brasil