2020: que ano foi esse? O meio ambiente, entre o fogo e a boiada

October 2, 2018. Flight from Porto Velho to Rio Branco (Brazil) Aerial views of Amazon rainforest, fires and deforestation. A team from Greenpeace navigated 1065km by boat through the central Amazon, via the rivers Amazonas, Rio Preto do Pantaleão, Maués-Açu, Parauari, Paraná do Ramos and Urubu, to document landscaped and meet the communities and indigenous inhabitants that could be affected by a possible oil exploration and gas in the region in which land blocks will be auctioned by the Brazilian government starting in November. The Greenpeace team discovered that the communities and indigenous populations that should have been consulted about this potential exploration were not informed by the proper government agencies. Additionally, the team found sensitive forest areas that already suffer from their historic menaces of large cattle ranches, mining and logging. Photo by Daniel Beltra for Greenpeace

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez cumprir sua palavra: passou com a boiada por cima de normas, Constituição, órgãos públicos, comunidades, florestas e quem mais ousasse estar pelo caminho do “progresso brasileiro” em 2020.

Em um ano marcado por recordes de destruição ambiental e pelo desmonte estatal, o fogo consumiu Amazônia e Pantanal como nunca antes se registrou, servidores foram perseguidos simplesmente por desempenharem seu trabalho, militares sem conhecimento técnico foram alçados a chefias estratégicas e o mundo passou a olhar para o Brasil como um inimigo do meio ambiente.

Em janeiro, uma situação sintomática: o ministro da Economia, Paulo Guedes, viu-se emparedado por representantes de fundos de investimentos, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça). A sinalização era clara: ou o Brasil consertava sua política ambiental ou o investimento externo seria retirado do país

Uma das consequências pode ser a não concretização de um acordo entre o Mercosul e a União Europeia, o que representaria a perda de R$ 50 bilhões por ano ao Brasil. Acuado, Guedes tentou acalmar os ânimos, minimizando a crise e culpando os pobres pela devastação florestal no país. O presidente Jair Bolsonaro também fez esforço para conter os danos, enviando um discurso em vídeo aos líderes mundiais, no qual garantia, entre outras falsidades, que “somos o país que mais preserva o meio ambiente”.

Não convenceu. Com a sinalização de retirada do dinheiro externo do Brasil, foi preciso que o governo tomasse medidas imediatas para tentar melhorar a imagem do país lá fora. A primeira resposta foi a criação do Conselho Nacional da Amazônia, comandado pelo vice-presidente, o general Hamilton Mourão.

Para Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a medida não passou de uma encenação, sem efetividade em campo.

“Dadas essas pressões que já começaram no ano passado e se intensificaram este ano, o Brasil criou uma fachada – a criação do Conselho e mandar as Forças Armadas para o campo -, mas com pouca efetividade, porque ele já tinha criado um antídoto”.

antídoto foi o decreto 9.760, de abril de 2019, que criou a chamada “conciliação” de multas ambientais. A medida, na prática, serve como proteção aos infratores, permitindo que eles sequer sejam julgados. “É uma encenação. O que a gente tem, agora, é certeza da impunidade”, diz Barreto.

Militarização

A submissão do Conselho da Amazônia a Mourão foi um dos passos rumo à militarização dos órgãos ambientais brasileiros, que passou a ser frequente desde então. Em 30 de abril, por exemplo, Salles exonerou dois conceituados chefes da área de Fiscalização Ambiental do Ibama – Renê Luiz de Oliveira e Hugo Ferreira Neto Loss – para dar lugar ao coronel da reserva Walter Mendes Magalhães Júnior, ex-comandante da Rota (a sangrenta tropa de elite da PM paulista).

Os exonerados, servidores de carreira, eram reconhecidos por ter vasto conhecimento técnico e comprometimento na área. Antes de serem retirados do caminho, eles vinham respaldando operações de fiscalização contra crimes ambientais, principalmente de extração de madeira e garimpo ilegais.

Em 6 de maio, mais militarização. Um decreto de Bolsonaro instituiu uma ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), passando às Forças Armadas o poder sobre todas as operações contra desmatamento ilegal e incêndios na Amazônia Legal.

Com isso, servidores técnicos perderam espaço e prestígio. Dali em diante, quem quisesse trabalhar na Amazônia teria que passar por cima dos militares.

“Tivemos a continuidade e intensificação de um processo de desmonte das nossas instituições, uma militarização absurda de todos os órgãos ambientais – Ibama, ICMBio e o próprio Ministério do Meio Ambiente -, onde técnicos capacitados, treinados e concursados foram substituídos gradualmente por policiais militares de São Paulo, cuja única experiência era atuar na repressão policial”, relata Beth Uema, diretoria da Ascema Nacional, a associação que representa os servidores de carreira em órgãos de meio ambiente.

A troca nos comandos foi só um capítulo da guerra travada por governantes contra os servidores públicos do Ibama do ICMBio, que se fortaleceu a partir da morte de um serrador em Rorainópolis, no sul de Roraima, ainda no começo do ano.

Francisco Viana da Conceição, o “Neguinho”, foi atingido por um tiro durante uma fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Militar (PM), em uma zona de mata.

Sem investigação dos fatos, governantes do norte do país passaram a pedir a cabeça de fiscais, inflando perseguições dentro dos órgãos e até entre a população. A grita seguiu como linha de trabalho para esses mandatários e para o próprio Bolsonaro, que seguiu induzindo os brasileiros a pensar que fiscais ambientais são “inimigos do progresso”.

“A gente tem vivenciado, dentro das instituições, um ataque quase que diário a todos os servidores que tentam cumprir com sua obrigação de fiscalizar, de monitorar. Esses ataques nem sempre são tão visíveis, porque são aqueles ataques que acontecem no dia a dia, aquele assédio diário, a retirada gradual de direitos, punições injustas, demissões que a gente nunca sabe exatamente por que aconteceu, perseguições. É um aparato montado para desmontar a área ambiental, que tem causado muito desolamento e muito desânimo dentro da categoria”, comenta Beth Uema.

Além do enfraquecimento interno dos órgãos, Bolsonaro também retirou a sociedade civil das decisões nacionais envolvendo questões socioambientais.

Por meio de decretos, o presidente excluiu, por exemplo, todos os membros da sociedade civil da participação no Fundo Nacional do Meio Ambiente e retirou entidades ambientalistas, representantes de povos indígenas e movimentos sociais da composição da Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio).

O geógrafo e professor doutor Wagner Costa Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), destaca que o enfraquecimento da participação social é estratégia pensada para que os colegiados estejam cada vez mais aparelhados ao governo.

“É lamentável, porque você torna esses comitês menos transparentes, com menor participação social, e evidentemente com uma posição majoritariamente governista, o que faz com que a expressão “passa a boiada” se torne mais factível”, afirma.

O desmonte estatal presumivelmente piorou a tragédia ambiental: o desmatamento na Amazônia brasileira atingiu 11.088 km2 até novembro, a maior área registrada nos últimos 12 anos, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Houve crescimento de 9,5% em relação a 2019.

No Pantanal, ainda de acordo com o Inpe, nos meses de julho, agosto e setembro, foi registrado aumento nas queimadas de, respectivamente, 241%, 251% e 181%. Apenas no mês de setembro, 14% de todo o bioma foi devastado pelo fogo. Além de toda a destruição florestal, o local virou um cemitério de animais selvagens.

O pampa, no Rio Grande do Sul, também teve recorde de queimadas. Até setembro, foram destruídos 6.044 km². O recorde anterior, considerando o ano inteiro, era de 2003, quando foram queimados 2.488 km². Fora isso, o bioma ainda é seriamente ameaçado pelo avanço indiscriminado da soja.

Veja abaixo uma linha do tempo produzida pelo Brasil de Fato com os acontecimentos mais importantes relacionados com o meio-ambiente. Depois, especialistas apontam as principais tendências para o ano de 2021.


Linha do tempo Meio Ambiente 2020 / Brasil de Fato

A luta não vai parar

Se nada drástico mudar, a devastação, as perseguições e desmoralização internacional do Brasil frente ao mundo devem continuar como marcas de Bolsonaro e Salles em 2021, de acordo com ambientalistas.

Thaís Bannwart, porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace, destaca que “Bolsonaro não governa apenas contra o meio ambiente, mas contra o Brasil. Contra isso, diz ela, as organizações que atuam em prol da preservação ambiental, não vão esmorecer.

“Nós seguiremos firmes na luta diária, pacífica, coletiva e incansável para conter esses retrocessos e trabalhar para uma sociedade mais justa, equitativa, plural e verde, porque o lugar do Brasil não é no passado que Bolsonaro quer nos levar”, ressalta.

O professor Wagner Costa Ribeiro faz coro à luta e pede também o envolvimento de pesquisadores e da comunidade científica para que mais mobilizações acontecem.

“Nós temos capacidade técnica e científica de argumentar e mostrar o quão danoso têm sido as ações desse governo. É preciso divulgar essas críticas, com fundamentação na ciência, para tornar isso instrumento de ação política por meio da mobilização social”, diz ele.

Por parte dos servidores, Beth Uema garante que a perseguição não vai impedir que eles sigam batalhando pela proteção da riqueza natural brasileira e por melhores condições de trabalho.

“Todos esses ataques, todo esse processo de destruição, tem servido para unificar a nossa luta e de certa forma trazer os servidores para a luta contra esse estado de coisa. O que a gente poderia dizer de afirmativo é que a gente, apesar de exaustos, temos a clara perspectiva de que essa luta vai continuar e que nós temos que nos preparar para isso. O processo de mobilização tem acontecido, mais e mais servidores têm se juntado em volta dos sindicatos, das associações, porque a gente sabe que, no ano de 2021, toda essa destruição terá prosseguimento. A gente quer estar preparado para isso”.

Edição: Michele Carvalho

fonte: Brasil de Fato

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