Os 50 anos do início da Guerra do Vietnã

No Brasil lembramos meio século do desencadeamento de um golpe militar que levou o país a uma ditadura militar por 21 anos de violências contra a liberdade e a democracia.

Por Pedro de Oliveira*

No pano de fundo internacional desta intervenção – que contou com a colaboração ativa dos serviços secretos dos EUA na preparação, execução e posterior acompanhamento logístico e de propaganda – reinava a Guerra Fria entre dois campos opostos: o imperialismo ocidental (leia-se sob a hegemonia dos Estados Unidos) e o socialismo real (sob a égide da União Soviética). Nesta data também lembramos outro acontecimento que se tornou paradigmático nas relações entre as Nações.

Após a Segunda Guerra Mundial, os vietnamitas tiveram de lutar contra a tentativa dos franceses de retomar o comando do país através da Guerra da Indochina, vencida pelos comunistas com a Batalha de Dien Bien Phu, em maio de 1954. Porém, o país saía mais dividido entre Norte – popular e socialista – e Sul – dominado por uma cúpula anticomunista, apoiada pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Dez anos depois mais tarde, em maio de 1964, temendo a formação de uma república socialista, os EUA passaram a enviar tropas para o país, resultando na Guerra do Vietnã, uma das mais sangrentas da história.

Há 50 anos, portanto, os Estados Unidos passaram a utilizar todo seu poder bélico para tentar vergar um outro país. Estima-se que mais de 3 milhões de vietnamitas foram mortos, 58 mil e 220 soldados americanos e centenas de milhares de feridos foram colocados fora de combate. Ainda assim, os estadunidenses saíram derrotados pela primeira vez em sua história de guerras travadas contra outros países.

Para justificar-se perante a opinião pública nacional e internacional, que lhe cobrava por impedir que o povo vietnamita escolhesse, livremente, seu regime de governo, o presidente dos Estados Unidos na época, General Dwight D. Eisenhower, apelou para uma Teoria do Dominó:

“Se vocês colocarem uma série de peças de dominó em fila e empurrarem a primeira, logo acabará caindo até a última… se permitirmos que os comunistas conquistem o Vietnã, corre-se o risco de se provocar uma reação em cadeia e todos os estados da Ásia Oriental tornar-se-ão comunistas um após o outro”.

Com o objetivo de sustentar o governo instalado em Saigon, o exército dos Estados Unidos aumentou sua atividade militar, chegando a ter mais de 600 mil soldados em ação no Vietnã. A partir de 5 de agosto de 1964, a Força Aérea norte-americana iniciou o covarde bombardeio do Vietnã do Norte, ocasião em que o avião pilotado pelo ex-candidato a presidente dos EUA pelo Partido Republicano, John McCain, foi abatido e depois apreendido. Superando incontáveis dificuldades e a enorme desproporção de poder de fogo, o povo vietnamita bravamente conquistou a vitória, resistiu às violências desumanas das forças intervencionistas americanas e forçaram a assinatura de um Tratado em Paris no qual os EUA ficaram obrigados a restabelecer a paz e a retirar toda a sua força militar do território vietnamita.

Na primavera de 1975, as forças patrióticas do Vietnã desencadearam uma grande ofensiva e derrubaram o governo títere de Saigon, libertando a Nação vietnamita do jugo estrangeiro de uma vez por todas. Em 25 de abril de 1976, a República Democrática do Vietnã foi renomeada República Socialista do Vietnã, que a partir de então passou a ser governado de forma unificada com capital em Hanói. Em 1977 o Vietnã foi aceito como membro plenipotenciário da Organização das Nações Unidas, a ONU.

Em 2008, na qualidade de membro de uma comitiva do PCdoB ao país irmão vietnamita, tive oportunidade de visitar o Museu da Guerra instalado em Ho Chi Minh City (antiga Saigon) onde pude verificar um grande painel das atrocidades impostas ao povo e ao Vietnã pelo Exército dos EUA durante a guerra. Me chamou atenção, entretanto, nesta visita, que o único livro exposto no Museu era justamente uma obra do ex-secretário de Estado Robert S. McNamara. O nome do livro: “Em Retrospecto” (numa tradução livre), “A tragédia e as lições do Vietnã”. Reproduzo aqui, de forma sintética, algumas das razões pelas quais McNamara entende que seu país teria sido derrotado na guerra, relacionadas na página 132 de seu livro:

1) Nós subestimamos naquela ocasião—assim como o fizemos desde então—as intenções geopolíticas de nossos adversários (neste caso os Vietnamitas do Norte e os Vietcongs, apoiados pela China e pela União Soviética), e exageramos os perigos representados por eles e suas ações práticas.

2) Encaramos o povo e os líderes do Vietnã do Sul a partir de nossos próprios conceitos e de nossa própria experiência. Nós os enxergamos como se tivessem a sede e a determinação de lutar por liberdade e democracia. Nos equivocamos completamente a respeito das forças políticas no interior da nação.

3) Nós subestimamos o poder do nacionalismo para motivar a população (neste caso os norte-vietnamitas e o Vietcong) a lutar e morrer por seus ideais e valores, assim como continuamos a nos posicionar da mesma forma em muitas regiões do Planeta.

4) Nossos julgamentos equivocados como estes refletem nossa profunda ignorância a respeito da história, da cultura e da política da população naquela área, além da personalidade e os hábitos de seus líderes. Certamente devemos ter cometido os mesmos falsos julgamentos em relação aos soviéticos durante nossas frequentes confrontações – sobre Berlin, Cuba, o Oriente Médio, por exemplo – se não tivéssemos acolhido os conselhos de Tommy Thompson, Chip Bohlen e George Keenan. Estes diplomatas investiram décadas estudando a União Soviética, seu povo e suas lideranças, como eles se comportaram como tais e como eles poderiam reagir às nossas ações. Seus conselhos se comprovaram falsos para formar nosso pensamento e nossas decisões. Para estes senhores não havia no Sudeste Asiático ninguém que pudesse ser consultado para a nossa tomada de decisões a respeito do Vietnã.

5) Falhamos na ocasião – e desde então – na tarefa de reconhecer as limitações do moderno equipamento militar de alta-tecnologia, das forças e da doutrina de enfrentar o que não é convencional e os movimentos populares altamente motivados. Falhamos também ao não adaptarmos nossa tática militar ao objetivo de ganhar os corações e ementes do povo a partir de uma cultura totalmente diferente da nossa.

6) Falhamos ao não influenciar o Congresso e o povo Americano em um debate aberto e franco dos pros e contras de um envolvimento em larga-escala no Sudeste Asiático antes de iniciarmos a ação.

7) Depois que se deu início à ação, acontecimentos imprevistos nos forçaram a tomar decisões fora de nosso plano original, e falhamos novamente ao não trabalhar para manter a opinião pública favorável aos nossos atos, por não ter explicado abertamente o que estava na verdade ocorrendo e porque fizemos o que tivemos que fazer. Não preparamos a população para entender os complexos eventos que estavam em curso para que a opinião pública reagisse de forma construtiva às necessidades das mudanças de curso diante de problemas como ter de navegar em mares desconhecidos e sem cartografia atualizada e diante de um meio ambiente adverso. A força mais profunda de uma Nação depende não apenas de sua força militar, mas principalmente na unidade de seu povo. Falhamos mais uma vez por não saber manter esta unidade em nosso país.

8) Nós não reconhecemos que nem o povo nem nossos líderes são oniscientes. Onde a segurança nacional dos Estados Unidos não está diretamente em questão, nosso julgamento de qual é o melhor interesse nacional de outro país deveria ser colocado em debate em fóruns internacionais. Não temos o direito divino de decidir como cada nação deverá se comportar a partir de nossa própria imagem ou segundo nossa própria escolha.

9) Não levamos em conta o princípio de que em ações militares dos EUA—ao contrário de respostas diretas em ameaças à nossa própria segurança—deveriam ser levadas a cabo apenas em ações conjuntas com forças multinacionais apoiadas totalmente pela comunidade internacional, e não de forma apenas formal.

10) Falhamos ao não reconhecer que em assuntos internacionais, assim como em outros aspectos da vida, existem problemas para os quais não há solução imediata. Para aqueles que têm dedicado suas vidas à solução de problemas, este fato é particularmente difícil de admitir. Mas, às vezes, precisamos conviver com a imperfeição, em um mundo instável.

As razões de McNamara alinhadas aqui — em grande medida — continuam válidas para as ações de intervenção americana em vários outros países desde o término da guerra do Vietnã. A resistência nestes países, entretanto, talvez não tenham extraído as lições e os aspectos positivos dos vietnamitas, que permitiram a eles resistir a todas as invasões e tentativas de colonização que o se povo teve de enfrentar através de décadas e décadas de história.

Depois de um período como esse, aqui brevemente relatado, em que o país sofreu todo o tipo de problemas decorrentes de uma guerra prolongada – como a devastação de boa parte do território, a liquidação da infraestrutura básica, como pontes, rodovias e ferrovias, a questão dos refugiados, a ação genocida do governo Pol Pot no Camboja, uma disputa de fronteiras com a China na região norte e calamidades naturais como inundações – com todas essas desgraças, o governo e o povo do Vietnã soube reconstruir o país.

Desde 1986, o governo central colocou em prática a política chamada “Doi Moi”, ou seja, um amplo processo de renovação para alavancar o desenvolvimento econômico diante da globalização acentuada dos mercados internacionais e a construção de novos blocos econômicos regionais. Prioridade total foi dedicada às reformas econômicas e à criação de um mercado econômico em vários setores, regulamentados pelo governo, ao mesmo tempo em que uma série de medidas foi tomada para reestruturar o aparelho estatal, dando-lhe maior eficiência e transparência. Assim, a economia vietnamita vem crescendo a índices extraordinários há décadas, saindo do isolamento e do bloqueio econômico imposto pelos EUA logo depois do final da guerra.

* Pedro de Oliveira é jornalista, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e do Portal Vermelho (site em que este artigo foi originalmente publicado)

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