“O Grão”: Vidas imóveis

Em o “O Grão”, do cearense Petrus Cariry, o ciclo de existência no agreste nordestino se cumpre numa lentidão contraditada pela velocidade da vida urbana. Enquanto um veículo irrompe pela rodovia na abertura do filme numa pressa típica dos tempos modernos, a vida na pacata Itaiçaba, sertão do Ceará, segue numa mansidão medieval. Este contraste entre o movimento e a lassidão é ditado pelas relações de subalternidade e exploração entre senhor e servo, configuradas nas transações comerciais entre o pequeno criador de cabras Damião (Nanego Lira) e o açougueiro/comerciante que dele adquire os animais.

Uma combinação que avança a cada sequência de cenas decantadas, lentas, que permitem ao espectador captar as nuanças do ambiente, das relações entre homem e meio ambiente, frustração e abandono, amor e morte. Notadamente, a falta de perspectiva do campesinato frente à estrutura de produção capitalista, contra a qual mal se rebela.

Comportamento que prenuncia choque com a filha, Fátima (Kelvya Maia), e a potencial conscientização do filho adolescente, Zéca (Luís Felipe Ferreira). São eles que ditam os contrastes deste filme dominado pela fábula sobre a morte, da aceitação dos imperativos da vida e as perspectivas dos filhos como fator de superação da pobreza. De Fátima que vê no casamento uma forma morar na metrópole, Fortaleza, de Zéca que pode, através da educação, ampliar seus horizontes, de Josefa (Verônica Cavalcante), companheira de Damião, que se ressente de sua passividade e, às vezes, contra ele se insurge, ainda que à base de resmungos.

São fios do roteiro de Rosemberg Cariry, cineasta, pai do diretor, Firmino Holanda e Petrus Cariry, que embalam a narrativa com a fábula oriental do rei e da rainha para tornar a morte da avó Perpétua (Leuda Bandeira) menos sofrida para o neto Zéca. Criam, assim, uma fábula de acomodação, de aceitação das fraturas impostas pelas estruturas medievais predominantes numa sociedade, a nordestina, portanto brasileira, que, aos poucos, tenta superar seus arcaicos traços.

Prolongar a existência é desafio da modernidade

Desta maneira, roteiristas e diretor preferem lançar sobre o indivíduo, no caso Damião, toda a culpa por seu pauperismo. Invertem, assim, a elaboração marxista de que as estruturas sócioeconômicas criam as formas de produção e os modos de vida das classes sociais, notadamente do proletariado, este, porém, deve nelas influir para colocá-las sob seu controle e, portanto, em seu benefício. Seria como se Damião trocasse de açougueiro para elevar seus rendimentos e, desta forma, melhorar o padrão de vida de sua família, mudando suas relações de troca.

No entanto, em “O Grão”, o criador de ovelhas submete-se às estruturas de exploração, sob a justificativa de que cumpre seu papel ao criar os filhos e, subentendido, alimentá-los, vesti-los, dando-lhes um teto. Visão esta que o leva ao alheamento, inclusive diante da anunciada morte da mãe, não entendendo que os recursos emanados da ciência prolongam a vida, como se vê na interferência do médico do Estado, que orienta Josefa sobre os remédios a comprar.

Cariry enquadra seus personagens em planos abertos, na maioria das  vezes parados, para captar sua exasperante imobilidade, igual à do meio em que vivem. Contribui para este clima de abandono, de decadência, de lentidão em que labutam; a fotografia de Ivo Lopes Araújo, em que predomina o claro/escuro, os corpos imóveis, o vazio. Só a agonia de Perpétua, os resmungos de Josefa, a insistência de Fátima em se casar e as perambulações de Zéca pelo lugarejo rompem essa mesmice.

TV não entra no
universo de Damião

Uma mesmice rompida, em algumas sequências, pela câmera imóvel de Cariy, através de sutilezas como o embate entre a “modernidade” via TV e a pobreza reinante na família de Damião. Imagens e comerciais não a alcança. Falta-lhe a integração social, o poder de compra, para neles se deterem. Ela, a TV, vira então um utensílio de ventriloquia encostado num canto da sala, que não se comunica com seu potencial telespectador. Grande poder síntese e análise dos Cariry e Holanda – até que ponto a TV alcança e modifica a visão dos marginalizados, às voltas com sua sobrevivência?

Noutra bela síntese, três gerações de mulheres tecem fios no velho tear – Perpétua enrola o algodão, Josefa o transforma em fio e Fátima em seu enxoval. Três etapas de produção num só plano, fixo, de grande significado. Humberto Mauro em “A Velha a Fiar” funde cantiga de roda e fiação; Cariy em etapas de produção, sem cortes. Desta forma, “O Grão”, assim como “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, ajudam o espectador a compreender a realidade que o cerca, sem os artifícios que fazem as graças do cinema hollywoodiano e seus clones planeta afora.

 

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O Grão”. Drama. Brasil.  2007. 88 minutos. Roteiro; Rosemberg Cariry, Firmino Holanda, Petrus Cariry. Direção: Petrus Cariry. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Elenco: Leuda Bandeira, Verônica Cavalcante, Nanego Lira, Kelvya Maia, Luís Felipe Ferreira.

* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários “TerraMãe”, “O Mestre do Cidadão” e “Paulão, lider popular”. Escreveu novelas infantis,  “Os Grilos” e “Também os Galos não Cantam”.

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