O filme “Que horas ela volta?” mostra um país em transformação sem a possibilidade de retorno

Depois de quase uma hecatombe no período do governo Collor, o cinema brasileiro vem numa onda crescente de produções anuais. Com esse aumento de quantidade, cresce também o número de obras de qualidade. Muitas das quais se propõem a mergulhar na alma do Brasil e da sociedade. Parece que a cinematografia nacional deslumbra um novo caminho para atingir o grande público sem o besteirol de muitos filmes. “Que horas ela volta?”, direção e roteiro da paulistana Anna Muylaert, em cartaz, é um bom exemplo de que o cinema nacional começa a encontrar um caminho para atingir o grande público sem cair nas armadilhas de obras puramente comerciais.

A película leva para a telona a vida de uma família em uma mansão no Morumbi, bairro onde residem muitos ricos da capital paulista, com o olhar da cozinha. A mesma casa grande de onde saem os batedores de panela que desconhecem quase completamente esse compartimento da casa. A cineasta adota um enquadramento que faz chorar, rir, mas principalmente leva a reflexões sobre as transformações em curso na sociedade brasileira. Ela alia com perfeição roteiro, direção, figurinos, trilha sonora e fotografia, transformando sua obra num grande filme para ser assistido por todos os brasileiros.

Assim, “Que horas ela volta?” segura a atenção do início ao fim sem deixar a peteca cair, levando o público a refletir, sem cair na falsa dicotomia maniqueísta ente o bem e o mal. Não tem um encadeamento linear feito telenovelas, que visam reduzir o pensamento.

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O filme vai muito além e os personagens são mostrados em seus aspectos psicológicos também. Ninguém é uma ilha e no relacionamento entre as pessoas transbordam as questões sociais pelas quais a elite se sente no direito de usar e abusar dos trabalhadores domésticos. Talvez, por isso, diversos setores dessa elite chiaram tanto com a aprovação da Lei das Domésticas, que lhes dá direitos trabalhistas, como horas extras e descanso remunerado, entre outros. 

Numa metrópole, onde simples “rolezinhos” de jovens pobres em shoppings causam furor na elite, esse filme mostra delicadamente a realidade em mutação de um país que se transforma. É central o comportamento de Jéssica (Camila Márdila), filha da protagonista e empregada doméstica Val (Regina Casé), que chega à mansão paulistana para prestar vestibular para a Universidade de São Paulo, no curso de arquitetura. Não acostumada a andar de cabeça baixa, a menina revolta-se a ver a submissão de Val, acostumada a dizer sempre sim aos patrões.

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Além de mostrar a mudança em curso no país, em que há uma importante mobilização social, o filme de Anna Muylaert, estampa o grande fosso existente entre ricos e pobres, num país com uma das maiores concentrações de renda do mundo.Tanto que Barbara (Karine Teles) manda limpar a piscina depois que a filha da empregada cai nela. 

Por causa das atitudes da filha, Val começa a perceber que não pertence àquele lugar como acreditava e pede demissão do emprego de 15 anos para ficar com a filha. Mas antes ela resolve entrar pela primeira vez na piscina, desafiando a autoridade, mesmo que escondida, numa piscina com água pela metade.

Ao descobrir que já é avó, ela manda a filha buscar o neto para o criarem juntas – diferente do que fez antes em relação à própria filha. As duas vão morar numa favela na periferia paulistana, mas com a certeza de que a vida vai melhorar. É a mudança se operando, sem a possibilidade de retorno, na visão de Anna Muylaert em sua obra-prima.

Marcos Aurélio Ruy – Portal CTB

Trailer do filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert:

 

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