O alvo

Por Claudia de Medeiros Lima*

Estava quentinha, confortável aqui no meu canto escuro, mas sabia que um dia teria que cumprir minha missão.

Ainda não havia chegado a minha vez. Muitas já se foram. Algumas conseguiram alcançar o propósito para o qual foram criadas, outras despediram-se em treinos ou comemorações, mas eu estou aqui adormecida, aguardando a minha vez.

Enquanto isso descanso, mas nunca por muito tempo. É preciso ir avante e ceder o lugar que logo vai ser ocupado por outra.

Acho que talvez seja hoje. Ouço homens rindo. Conversam entre si num tom firme, mas descontraído. Parece ser um diálogo comum para eles, talvez até banal.

Alguém abre a porta, recebo de imediato um facho de luz intenso sobre mim. Acho que chegou a minha vez.

Sinto os dedos me tocando, eles cheiram a nicotina e tem traços de algumas outras substâncias, as quais não consigo identificar. Parecem suados. Por pouco não sou derrubada no chão.

É hoje! Vejo algumas estrelas estampadas nos braços de alguns dos homens. Eles estão eufóricos, não consigo dizer exatamente o que vejo nos olhos deles, estou confusa. Posso afirmar, todavia, que respiram ofegantes e gritam muito.

Estou aqui, chegou a minha vez! Novamente, me colocam em um lugar escuro, um pouco apertado e frio. Algo me segura de forma firme e me empurra na direção das outras, logo, percebo que não estou só.

Está silencioso agora, não ouço mais os motores. Sinto, contudo, que estamos em movimento. Não vejo nada, além desse cilindro escuro e frio.

Ouço muitas vozes, no início somente vozes masculinas já conhecidas. Agora outras diferentes. Ouço música, cachorros latindo, crianças brincando, velhos jogando dominó. De repente, todos esses sons são automaticamente abafados por gritos, gemidos e estouros.

Nem percebi, foi tudo tão rápido. Agora estou em outro lugar. Vi que a superfície era escura. Aqui, dentro, contudo, é quente, macio e de um vermelho que poderíamos chamar de “vivo”, poderíamos, se eu não tivesse chegado.

Agora sim, cumpri minha missão.

As manchetes nos jornais me anunciam equivocadamente. Eu nunca estive perdida, só estive aguardando o momento de acertar o alvo.

A vida continua, volto a ouvir as crianças, o jogo de tabuleiro, os cachorros, o vai e vem de pessoas, a música… A música vai aumentando o volume. Cada vez mais alta, uma voz potente e rouca ecoa o refrão: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

* Professora do Instituto Federal da Bahia e Mestra em Educação.