Meio século do romance que escancarou a solidão da América Latina

A literatura latino-americana jamais seria a mesma depois do fatídico maio de 1967, quando chegou às livrarias de Buenos Aires a maior obra de Gabriel García Márquez, Cem anos de Solidão. A imaginária Macondo – fundada pelos Buendía – carrega toda a mazela de um continente esquecido que meio século depois conquistou o direito de acreditar na “arrasadora utopia” de uma “segunda oportunidade sobre a terra”.

A obra de Gabo completa cinquenta anos intacta. Mas o pano de fundo, a irracional guerra entre Liberais e Conservadores colombianos, parece finalmente estar perto do fim. Isso porque, o acordo de paz entre as Farc, a mais antiga guerrilha, e o governo da Colômbia, começou a ser implementado no final de 2016. À época, o comandante em chefe Timoleón Jiménez anunciou que “o amor de Maurício Babilônia por Meme poderá ser agora eterno e as borboletas que voavam livres atrás dele, simbolizando seu infinito amor, poderão agora se multiplicar pelos séculos cobrindo a pátria de esperança. Bem vinda a segunda oportunidade sobre a terra!”. Enquanto o mundo acirra o cenário de guerra, a Colômbia anuncia a paz e o triunfo dos que lutaram meio século contra o nó da solidão.

Para quem vê de fora – do continente – tudo que a pequena Macondo vive ao longo de seus cem anos pode soar fruto da imaginação de um roteirista exagerado, mas é pouco, se comparado às desgraças e belezas que Gabo pegou emprestadas da história real não só da Colômbia, mas dos demais países latino-americanos. Não à toa ele afirmou, ao receber o Prêmio Nobel em 1982, que os latino-americanos precisam “pedir muito pouco à imaginação”, porque “o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável”.

A batalha entre os liberais e os conservadores, conhecida como “Período da Violência” na Colômbia, resultou na morte de mais de 200 mil pessoas entre 1948 e 1960. O estopim para o início desta guerra foi o assassinato do advogado e político liberal Jorge Eliécer Gaitán que 20 anos antes denunciava o Massacre das Bananeiras. O episódio nebuloso da história colombiana aconteceu em 1928, na terra natal de Gabo, Aracataca, quando ele tinha apenas um ano de idade.

Trata-se de um assassinato em massa de milhares de trabalhadores durante uma greve por direitos trabalhistas que nunca foi devidamente documentado. Os grevistas trabalhavam na produção de bananas para a multinacional dos Estados Unidos, United Fruit Company. A história oral contabiliza pelo menos mil mortes, já a contagem oficial assume apenas nove mortos e três feridos. A cena é narrada em Cem Anos de Solidão com o mesmo tom mágico do restante da obra, e soa como um encantamento coletivo onde as armas parecem disparar fogos de artifício, mas sobra apenas uma testemunha viva para denunciar o crime à comunidade que se recusa a acreditar do trágico episódio.

“O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas”

A guerra e a greve são tão absurdas, que parece mais fácil acreditar na chuva de flores que cobriu como um tapete as ruas de Macondo depois da morte de José Arcádio Buendia, o primeiro da estirpe. Ao acrescentar pitadas de magia na história exagerada da América Latina, Gabo consolidou o realismo mágico e revolucionou a forma como os escritores latinos contariam histórias a partir de então.

Traduzido para 35 idiomas e com mais de 150 milhões de exemplares vendidos, a saga das sete gerações dos Buendía cativou leitores mundo a fora. O romance escancarou com dureza – e sem perder a ternura – a desgraça dos condenados a cem anos de solidão que depois de meio século buscam a segunda chance sobre a terra.

Mariana Serafini, do Portal Vermelho. Foto: AP

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