Heroísmo de Clint Eastwood chega ao auge em filme sobre Mandela

Há alguns anos atrás, mesmo com a consagração de Clint Eastwood como realizador de filmes primorosos pela crítica, algumas pessoas ainda não podiam acreditar que “aquele cowboy dos westerns spaghettis, ou aquele policial casmurro dos filmes americanos”, era um dos mais respeitados cineastas do cinema estadunidense. Os principais Oscars arrebatados por “Os imperdoáveis” (“Unforgiven”, 1992) não foram capazes de dimensioná-lo à altura de seus feitos em mentes e corações preconceituosos com o modelo clássico de narração. Há ainda gente que confunde alhos com bugalhos, a pensar que um filme somente pode se consolidar como obra válida (e de arte?) se não obedece ao esquema griffithiano de narrativa.

Mas, para a crítica mundial, se Clint Eastwood já tinha feito bons filmes, antes da consagração de “Bird” (1988), no entanto, era ainda um realizador sem expressão maior. É com “Bird” que consolida a sua posição de diretor mais diferenciado. Considerado o rei do “bebop”, Charles “Bird” Parker (1920/1955), vivido com extraordinário vigor por Forest Whitaker (melhor ator no Festival de Cannes), é um músico que tenta expandir o jazz para além dos guetos negros e, viciado em drogas, luta para continuar a seguir carreira.

A criação da produtora Malpaso lhe dá uma excelente margem de liberdade dentro dos grilhões da indústria cinematográfica, e seus filmes, distribuídos pela Warner, circulam bem no mercado internacional. Mas, quando inicia a sua fase mais autoral, precisa ainda trabalhar em filmes de ação alheios. Entre “Bird” e “Coração de caçador” (“White hunter black heart”, 1990), há um espaço de dois anos. Trata-se de um dos melhores filmes do ator/diretor. Baseado em livro de Peter Viertel sobre as aventuras do cineasta John Huston no continente africano durante as filmagens de “Uma aventura na África” (“The african queen”, 1953), procura mostrar a obsessão deste realizador pelo perigo, pela ação e pela natureza. Para Huston, assim como para Clint Eastwood, viver é lutar. Em “Coração de caçador”, mal visto e incompreendido durante o seu lançamento, Eastwood focaliza o dilema de um diretor de cinema, na África, mais preocupado em caçar elefantes do que iniciar logo as filmagens. Ainda neste mesmo ano, 1990, realiza “The Rookie”, um movimentado ‘thriller’ feito mais para pagar as contas do filme anterior, que não se saiu muito bem na bilheteria, com ele próprio como ator ao lado de Charlie Sheen, Raul Julia, e Sonia Braga.

“Os imperdoáveis” (“Unforgiven”, 1992) é, talvez, a sua obra-prima, uma releitura dos códigos clássicos da tradição do western americano, que lhe proporcionou o Oscar de melhor filme. Dedicado a Sergio Leone e Don Siegel, seus dois mestres confessos, “Unforgiven” surge numa época em que o western, o cinema americano por excelência, na definição de André Bazin, já desaparecido, é, aqui, redivivo numa reversão de seus valores típicos. Velho pistoleiro (Eastwood), que não consegue nem mais montar um cavalo, é contratado para descobrir o paradeiro de um homem que retalhou o rosto de uma prostituta. A amargura toma conta de todo o filme, amargura acentuada pela iluminação intimista de Jack N. Green. No elenco, Gene Hackman, Richard Harris, Morgan Freeman.

O “eastwood” seguinte, “O mundo perfeito” (“A perfect world”, 1993) é outro belo filme, mais um drama psicológico do que propriamente um ‘filme de ação’. Presidiário foge do cárcere e leva com ele, como refém, um garoto. Mas um xerife da velha guarda o persegue até o fim (Eastwood, evidentemente). O fugitivo é Kevin Costner e, ainda no elenco, Laura Dern. O diretor evita o maniqueísmo rasteiro na evolução das situações e questiona o que é de fato ser um ‘bandido’ dentro de uma sociedade preconceituosa e estúpida. Obra destinada a uma revisão urgente.

Uma surpresa o belo, envolvente, sensível “As pontes de Madison” (“The Bridges of Madison County”, 1995), que se poderia colocar na lista dos melhores ‘eastwoods’. Um fotógrafo (Eastwood) vive um romance de apenas quatro dias com uma mulher casada (Meryl Streep) durante um trabalho no Condado de Madison em 1965. Filme equilibrado no estabelecimento romanesco, na sua fabulação, tem momentos cinematográficos surpreendentes, como quase ao final, dentro do carro, quando Streep fica indecisa entre descer ou continuar ou quando limpa as lágrimas para aparecer alegre na chegada do marido ao término do romance com o fotógrafo.

Em “Poder absoluto” (“Absolute Power”, 1997), um ladrão (Eastwood) já cansado de guerra, assalta a mansão de um milionário ausente e presencia um crime cometido pelo presidente dos Estados Unidos (Gene Hackman). No primeiro terço da narrativa, há um impressionante voyeurismo involuntário, e o desempenho de Hackman é poderoso. Um filme, segundo o crítico Ruy Gardnier, na verdade, sobre a paternidade. Ainda em 1997, realiza “Meia noite no jardim no bem e do mal” (“Midnight in the garden of Good and Evil”). Neste, um jornalista novaiorquino viaja até a esquisita cidade de Savannhah para cobrir a opulenta festa de Natal de um renomado colecionador de arte (Kevin Spacey). A festança, no entanto, acaba em assassinato e o jornalista decide, então, investigar o crime, vindo a descobrir, com isso, o lado obscuro da cidade. A direção de Eastwood dá ao filme uma narrativa quase “muscular”.

“Crime verdadeiro” (“True crime”, 1999) levanta diversas questões, como o ostensivo racismo que se esconde sob o veredicto, a fragilidade da justiça e o dilema ético da imprensa sensacionalista, encarnado com humor pelo editor chefe Alan Mann (James Woods).

Apesar de tantos filmes bons, alguns excelentes, o melhor (exceção de “Os imperdoáveis”), no entanto, de Clinton Eastwood Jr (seu nome de batismo) ainda estaria por vir nos anos 2000, quando vem a alcançar a plena maturidade como realizador cinematográfico, e a se situar como um dos melhores do cinema contemporâneo, aquele que resgata com força a melhor tradição do cinema americano sob um ponto de vista crítico e revisionista nos seus temas delicados. Assim, em 2000, “Cowboys no espaço” (“Space cowboys”), entretanto, ainda é um filme menor na extensa filmografia do cineasta. Piloto da Força Aérea americana (Eastwood) aposentado, com passagem pela NASA, é chamado às pressas para consertar um satélite no espaço. Única pessoa qualificada para a missão, ele impõe, porém, algumas condições e, entre elas, que possa levar seus três amigos para a expedição. Reflexão sobre a velhice e o tempo que passa.

Mas “Dívida de sangue” (“Blood Word”, 2002) também é um filme “en passant” até o surgimento de “Sobre meninos e lobos”. Em “Blood Word”, Eastwood é um agente aposentado (e desde “Cowboys no espaço”, o herói eastwoodiano está sempre nesta condição e se dá início à reflexão sobre o heroísmo que tem a sua culminância em “Invictus”), que passou por um transplante de coração, é contratado pela irmã da mulher que doou o órgão vital, que bate agora no peito do agente, para que este investigue a morte desta.

Indicado para a Palma de Ouro, “Sobre meninos de lobos” (“Mystic river”, 2003) é uma obra extraordinária. Após a filha de Jimmy Marcus (Sean Penn) ser encontrada morta, Sean Devine (Kevin Bacon), seu amigo de infância, é encarregado de investigar o caso. As investigações de Sean o fazem reencontrar um mundo de violência e dor, que ele acreditava ter deixado para trás, além de colocá-lo em rota de colisão com o próprio Jimmy, que deseja resolver o crime de forma brutal. Há ainda Dave Boyle (Tim Robbins), que guarda um segredo do passado que nem mesmo sua esposa conhece. A caçada ao assassino faz com que o trio tenha que reencontrar fatos marcantes do passado, que eles preferiam ficar esquecidos para sempre.

Seguem: “Menina de ouro” (“Million dollar baby”, 2004), precioso, o díptico “A conquista da honra” (“Flags of our fathers”, 2006) e “Cartas de Iwo Jima” (“Letters from Iwo Jima”, 2006), rodados quase ao mesmo tempo, “A troca” (“Changeling”, 2008), “Gran Torino” (idem, 2008), aguda observação sobre a América e o filme onde Eastwood faz “implodir” o seu personagem “dirtyharryano”

José Geraldo Couto assinala bem a questão do heroísmo que se plasma em “Invictus”, 2009, que saiu em seu blog da internet: “Prefiro ver a opção Mandela como o coroamento do processo de questionamento do herói na obra do cineasta. Para ele, Mandela é o herói possível e necessário de nosso tempo. Em vez do macho justiceiro e truculento dos primeiros westerns e policiais, um homem sábio e doce, capaz de estender a mão ao inimigo para construir uma sociedade melhor. No mundo conflagrado em que vivemos, eivado por fundamentalismos e intolerâncias, não conheço perspectiva mais revolucionária.”

Por André Setaro, no Terra Magazine

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