Guerra midiática insufla ódio na Venezuela

A situação na Venezuela é complexa: enquanto o governo de Nicolás Maduro enfrenta dificuldades para superar a crise econômica, política e social que atinge o país, a oposição intensifica o chamado a protestos cada vez mais violentos. O papel jogado pelas corporações midiáticas tem sido crucial para insuflar o ódio e provocar a desinformação sobre o que se passa no país. O assunto foi pauta de debate na sede do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, nesta quinta-feira (13), em São Paulo.

O diálogo contou com a participação do professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Igor Fuser; de Socorro Gomes, do Conselho Mundial da Paz; e de Paola Estrada, da articulação de movimentos sociais na Aliança Bolivariana das Américas (Alba). Para eles, é fundamental discutir e refletir sobre o tema para além dos mantras repetidos à exaustão pelos grandes grupos de comunicação, que fazem oposição sistemática ao processo de transformações sociais no país desde que Hugo Chávez chegou ao poder, em 1999.

“A Venezuela foi o país que iniciou a série de experiências progressistas no continente a partir de 2000”, explica Igor Fuser. “São processos que, aproveitando a conjuntura global, apostaram na soberania regional e na concepção do Estado como agente de inclusão e desenvolvimento. Por isso, se chocam, desde o início, com os interesses das classes dominantes”.

A genealogia desse antagonismo, segudo o estudioso, remete à formação da região. “Nossos países nasceram com a função, no sistema capitalista internacional, de fornecer bens primários, matéria-prima. Reverter essa lógica incomoda”, opina. “A partir de 2000, começamos um processo coletivo no continente de tentarmos andar com as próprias pernas, em bloco. O império utiliza de todos seus recursos econômicos e ideológicos na contra-ofensiva, em aliança com as elites locais”.

Apesar de na Venezuela a dimensão do problema ser maior, a reação da qual fala Fuser não se resume apenas a este país. “A contra-ofensiva imperialista mira destruir partidos e líderes de esquerda em todo o continente. Cristina Kirchner, Fernando Lugo, Manuel Zelaya são tão vítimas desse processo de perseguição e destruição de reputação quanto Lula e Dilma”, argumenta. “Não é uma questão de alterância no poder, de disputar eleições democraticamente. Cenário é de destruição da esquerda”.

A diferença de gravidade vizinhos para a Venezuela é que, no país de Chávez, as transformações foram mais profundas. “A força do processo venezuelano tem muito a ver com a participação popular e a conscientização sobre os avanços sociais”, pontua Fuser, acrescentando que isso radicaliza a polarização. Para ele, o cenário apontado por muitos é de pré-guerra civil – um risco real, em sua avaliação.

Temer joga Brasil na fogueira do conflito

Temos muitos a ver com a Venezuela, na opinião do professor. “O governo de Michel Temer tomou lado na disputa de lá, o lado da direita. Governo golpista brasileiro está a serviço de Capriles, da oposição venezuelana e do imperialismo antichavista”, denuncia. Para além de uma questão de preferências ideológicas, Fuser ressalta que guerra civil na Venezuela traria duras consequências para o Brasil, como tráfico de armas e refugiados em massa.

“Temer joga lenha na fogueira da Venezuela, ao invés de agir como mediador, com diálogo democrático”, critica Fuser. “O brasileiro que quer uma vida mais justa e igualitária precisa agir, agora, com solidariedade aos nossos irmãos venezuelanos”.

Terrorismo midiático gera o caos

Em busca de uma solução pacífica e democrática para a encruzilhada em que está colocado, o governo Maduro agendou para 30 de julho uma Constituinte a fim de delegar ao povo as decisões sobre o destino do país. A escolha da oposição, entretanto, foi de não reconhecer o processo e intensificar as ações de desestabilização e convulsão social. A opção dos setores reacionários, na opinião de Socorro Gomes, é potencializada pel papel jogado pela mídia.

“A primeira guerra é sempre a midiática. O império age de forma agressiva nesse campo. Fizeram com Chávez e agora fazem com Maduro”, afirma. “O império midiático retrata a Venezuela como se sua vontade fosse a vontade de todo o povo venezuelano. São falsos humanistas”, assinala. “O caos na Venezuela é insuflado pelos oligopólios comunicacionais, já que o discurso do caos é um atalho para o projeto das elites” – o chavismo coleciona vitórias eleitorais, a despeito da comum acusação de ditadura por parte dos donos da mídia privada.

“A Venezuela apostou no fortalecimento das organizações populares. Esse é o diferencial que sustenta a resistência do processo”, avalia Gomes. Uma das maiores reservas de petróleo do mundo ousou romper com os grilhões do império e, com a renda deste recurso, combateu mazelas seculares, como o analfabetismo, a fome e a miséria. À desobediência, soma-se a força da militância na construção do projeto chavista, conforme descreve Gomes. “As missões populares e a participação social na política incomoda muito as elites, turbinando o ódio”.

Venezuela, uma inimiga simbólica

Para Paola Estrada, da Alba Movimentos, é fácil entender porque Chávez e Maduro viraram alvo preferencial dos Estados Unidos. “Além da questão do petróleo, a Venezuela teve avanços profundos. Foi Chávez quem resgatou a bandeira do socialismo e o legado de libertadores como Simon Bolívar”, sublinha. Além de mudar a relação de suserania e vassalagem, complementa Estrada, a Venezuela também se constitui como inimigo simbólico do imperialismo.

Para explicar o processo de desestabilização do país, Estrada recorre à ideia da guerra não-convencional, também chamada guerra de 4ª geração. O conceito, explica, se ancora na espetacularização midiática e na repetição de ideias e imagens. “A guerra midiática e econômica contra a Venezuela é muito bem articulada, criando consensos, pela repetição, contra líderes e referências da esquerda”, diz.

Nesse expediente, um dos argumentos preferidos das corporações midiáticas é de que os governos progressistas levam os países à falência. “Vivemos isso no Brasil”, lembra Estrada. “O terrorismo midiático foca na inflação, mas não explica que, no caso venezuelano, se trata de uma inflação induzida”, rebate. “Falam muito em desabastecimento, que é real. Mas não falam que lá se passa algo muito similar ao que ocorre em Cuba: há um bloqueio. Os produtos não chegam”.

A insistência na tese de que os governos chavistas não respeitam direitos humanos, enquanto as manifestações violentas – as chamadas “guarimbas” – corróem a sociedade venezuelana é outra falácia, na opinião de Estrada, causando confusão em setores da própria esquerda latino-americana. “A intensidade da ofensiva midiática contra a Venezuela e Nicolás Maduro é inédita, pois está sendo massificada”, alerta.

Longe de negar a gravidade da crise econômica, Estrada busca lançar outras perspectivas sobre as dificuldades enfrentadas pelo país para desmitificar a versão única da mídia. “Não se pode negar que há uma grave crise na Venezuela, mas não podemos nos basear nos marcos daqui”, defende. “O metrô em Caracas custa menos de cinco centavos, o analfabetismo foi extinto e o acesso ao ensino superior disparou, o que significa que a economia venezuelana está assentada sobre outra lógica. É preciso relativizar para entender como a crise afeta o povo”.

Quanto à Constituinte, Estrada lamenta a narrativa enviesada que predomina sobre o assunto. “A polêmica em torno da Assembleia esconde fraudes e tentativas de destituição forçada contra Maduro”, frisa. A situação levou a quase cem mortos em cem dias, em manifestações repletas de “violência fascista”. O governo chegou a lançar, recentemente, uma Comissão Nacional da Verdade para apurar crimes decorridos das “guarimbas”.

A Constituinte, na ótica de Estrada, visa aprofundar a democracia direta como forma de debater e solucionar os problemas colocados. “O mês de julho será decisivo para o processo na Venezuela. São mais de seis mil candidatos a deputados constituintes, sendo que um já foi assassinado”. O esforço dos movimentos sociais e das mídias contra-hegemônicas brasileiros, de acordo com Estrada, tem de ser de fomentar esse debate e oferecer outros pontos de vista sobre o processo, que vive momentos decisivos.

Assista à íntegra da transmissão realizada pela Fundação Perseu Abramo:

Por Felipe Bianchi no Barão de Itararé 

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