“Flor do Deserto”: Vítima dos costumes

No cipoal dos filmes atuais, dominado pelas produções estadunidenses, às vezes o espectador se surpreende com raras obras, como este “Flor do Deserto”, da americana Sherry Hormann. Seu acerto é torná-la um “manifesto contra a circuncisão feminina” em vários países africanos e asiáticos e até mesmo nos EUA e na Europa.

Principalmente pela abordagem que Hormann lhe dá, valendo-se do melodrama, para situar a luta da modelo somali Waris Dirie (modelo etíope Liya Kebede) para banir a mutilação do órgão sexual feminino em seu país e, notadamente, na África.

Hormann poderia ter enveredado para uma narrativa linear, de princípio, meio e fim, explorado o glamour do mundo das top models, preferiu dotá-la de flasback, entrechos, entremeando cenas de sua luta pela sobrevivência em Londres e seu passado numa região árida da Somália.

Ao fazê-lo põe Waris, criança, em seu habitat, entre cabras, a paisagem inóspita, a relação com os pais e a carência de opções. Contribui para isto a fotografia de Ken Kelsch, que trás para a tela a aridez do deserto e as armadilhas da Londres, megalópole. Nestes espaços, a garota se vê presa a teias que a impedem de viver com dignidade. E a câmera de Hormann/Kelsch está sempre a situando em relação aos grandes espaços, seja no deserto ou nas ruas londrinas.

Mutilação genital de Waris choca

Na Somália, Hermann concentra-se em sua infância e nos costumes, revelando o quanto estes são impositivos. Eles lhe ditam ritos de passagem, como quando, aos três anos, sofre a mutilação. Uma sequência de brutal realismo, em que Hormann se vale de elipses, distanciando a câmera, ilustrando o ato com os gritos da criança.

Verdadeiro horror, dado que o/a espectador/a vê a gilete enferrujada com que é ela circuncidada. Mais chocante do que se Hormann a tornasse mais explícita.

Uma sequência que tem paralelo igualmente chocante no diálogo entre a jovem Waris e sua amiga Marilyn (Sally Hawkins), em Londres, quando duas culturas adversas se confrontam. Ela se vê fragilizada, diante do contraponto que a inglesa lhe apresenta, e os costumes se distanciam. Hormann consegue passar as diferenças sem que elas se critiquem. A condição feminina emerge da ação e o/a espectador/a sente o quanto Waris foi brutalizada.

Através do equilíbrio de sua denúncia, a infância de Waris e sua emergência como modelo, lhe permitem escapar à aridez e à repetição. Usa tempos e espaços com mestria. Numa das sequências, o véu preto ressalta os grandes olhos negros de Waris, fazendo-a saltar do mundo tribal para as passarelas, noutra das ruas de Londres para as de Nova York. Prova de que Hormann não quer apenas fazer denuncia, mas também cinema de grande impacto visual e de conteúdo participativo.

Isto surge quando ela transfere a ação para as passarelas, em raras sequências. Pois seu interesse é mesmo fazer o/a espectador/a compreender o quanto Waris foi mutilada e o contou em seu livro homônimo, em co-autoria com Cathleen Miller. As sequências em que a ação se centra no aprendizado dela como top model quase fragilizam a narrativa. A Lucinda de Hormann (Juliet Stevenson), dona da agência que transforma Waris em modelo, é cópia da Miranda Priestly (Meryl Streep) de “O Diabo Veste Pravda”. E destoa, pois Lucinda é exagerada, surreal, até.

Sequências da agência fragilizam a narrativa

Esta situação só é amenizada quando o fotógrafo, descobridor de Waris, Terry Donaldson (Timothy Spall) entra em cena. Bonachão, ele a deixa à vontade, em química perfeita. O glamour se transfere do estúdio para o grande mundo das revistas de moda e os outdoors espalhados por Londres. São instantes que fazem Waris, ao invés de fugir ao passado, a ele se vincula e o filme retoma seu eixo principal: o de seus costumes. Momento que Hormann liga as mudanças na vida da modelo à história de seu país.

Palco dos conflitos da Guerra Fria, a Somália, sob Ziyad Barre (1977/1991), ficou décadas espremida entre a antiga URSS e os EUA. Num desses instantes, houve a queda de Barre e a vida de Waris mudou. Não sua consciência de que podia usar sua fama e, agora, dinheiro, para fazer campanha contra a mutilação dos órgãos genitais das somalis. Hormann ao encampar sua causa não estigmatiza a família de Waris, não critica o Alcorão nem condena a África. Deixa a tragédia de que Waris foi vítima por conta dos costumes milenares, que ambas pretendem mudar.

O que deixa o filme em aberto. É o caso de se dizer que em “filmes militantes” o complemento cabe às profundas mudanças sócio-político-econômicas, que, sem dúvida, criarão novos costumes, portanto, nova condição feminina. Mesmo assim, é difícil ficar indiferente ao que ambas denunciam e pretendem mudar usando imagens poderosas e narrativa realista.

 

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“Flor do Deserto”. (“Desert Flower”). Drama. Áustria/Alemanha/Reino Unido. 2009. 124 minutos. Roteiro: Sherry Hormann, baseado na autobiografia de Waris Dirie, escrita com Cathleen Miller. Direção: Sherry Hormann. Elenco: Liya Kebede, Sally Hawkins, Timothy Spall, Juliet Stevenson.

 


Cloves Geraldo é jornalista e cineasta, dirigiu os documentários “TerraMãe”, “O Mestre do Cidadão” e “Paulão, lider popular”. Escreveu novelas infantis,  “Os Grilos” e “Também os Galos não Cantam”. (Publicado no Portal Vermelho)

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