Estamos sós

Tem dias em que o sono demora a chegar. A noite é sempre o momento oportuno ou inoportuno de pensarmos sobre todos e sobre tudo o que nos aflige. Nesses dias de pandemia me pego refletindo sobre a solidão. A solidão de familiares e amigos, que não estão conseguindo lidar com a questão. A solidão expressa nos depoimentos das famílias das pessoas com covid-19, que abruptamente perdem alguém amado. Também, a minha própria momentânea solidão, que me retira da cama às duas da manhã para escrever esse texto, talvez para expurgar o próprio rejeitado sentimento.

O ser humano é gerado dentro de outro ser humano. Nasce pelo auxílio de mãos, que não são suas. Alimenta-se do leite de outro humano. Vive por um tempo como extensão do corpo de outra pessoa. É um ser gregário, ao longo da vida relaciona-se com muitas pessoas, vivenciando vários grupos sociais.

O homem aprende a ser homem com os outros. Aprende a falar, andar, ler, escrever, rir, chorar, brincar, aprende a contar piadas com o amigo humano mais engraçado. Em sua caminhada são muitos encontros, alguns muito prazerosos, outros nem tanto. Faz belas e duradouras amizades, e, com o mesmo ímpeto, elege inimigos para todo o sempre.

O ser humano ao longo da caminhada aprende um ou vários ofícios. Aprende a trabalhar, sempre numa relação de troca com os pares. Surpreende-se ao se ver habilitado a tocar um violão, graças a instrução recebida do ensinante. Descobre-se atleta após ter seguido as orientações do amigo humano professor.

O homem apaixona-se torrencialmente, vive alguns romances eternos, que se desfazem em um segundo. Às vezes casa-se, descasa-se, casa-se novamente, descasa-se outra vez e resolve não casar mais. Daí a pouco, junta-se a outro ser humano e decide não separar. Ainda há aqueles que decidem estar juntos de várias outras formas, com várias outras pessoas, às vezes, concomitantemente.

Muitas vezes, alguns seres humanos geram filhos, com os quais mantêm relações de afeto. Tem aqueles que preferem não se relacionar, muito menos dar ou receber afeto ao rebento. E o ser, que não recebe o carinho devido, parte em busca do bem não recebido em outros braços, tão humanos quanto.

O homem adoece e é cuidado por outra pessoa, tantas vezes, por alguém com o qual passa a se relacionar somente após o infortúnio da doença, uma relação profissional, mas uma relação humana. Infelizmente, alguns seres humanos não dispõem desse privilégio de ter sua saúde acompanhada por um especialista. Todavia, se avaliar direitinho, em algum momento da frágil vida, percebem que receberam cuidados de outrem.

O ser humano se acostuma a viver rodeado de muitas pessoas, alguns rodeados de nem tantas pessoas assim, compartilhando sentimentos, bens, sinal de internet, pedaços de pizza, chamego no cangote, não vivem ou não costumam viver no isolamento!

Há, contudo, um único momento na vida em que nenhuma relação humana lhe é provável. Quando a entrada de ar nos pulmões já não lhe é possível. Quando as batidas do coração vão desritmando lentamente. Quando desvanecendo a visão lhe trai, não há mais companhia. Quando não há mais vida humana, ainda que muitos estejam reunidos para se despedir do companheiro, todos acabam percebendo que em um único dia, dentro de todos os outros dias, estamos sós!

Claudia de Medeiros Lima é professora do Instituto Federal da Bahia e Mestra em Educação.