CINEMA: “O Profeta”: Escola do crime

Grandes filmes, normalmente, são simples. Fáceis de acompanhar; criam empatia com o espectador e não se detém em questões secundárias. No entanto, vê-los apenas pelo que está na tela pode ser enganoso. Não é este o caso deste “O Profeta”, conduzido com rama competência pelo francês Jacques Audiard. Em princípio trata-se de um drama de prisão, gênero que, ao longo da narrativa, será deixado para trás. O que Audiard quer é mostrar como as relações entre o mestre corso César Luciani (Niels Arestrup) e o jovem aprendiz, o árabe Malik El Adejebare (Tahar Rahim), terminam como nas velhas fábulas sobre poder.

Levado para uma penitenciária francesa, Malik aprende as duras regras impostas pelo sistema carcerário e as obscuras normas do crime organizado, que interagem nos corredores, celas e gabinetes da prisão.  Esta teia, que une policiais franceses e mafiosos corsos e árabes, leva-o a Luciani, chefão da máfia corsa, sentenciado, mas não amordaçado, de quem se torna aluno, servo e espião.

Em certo momento, o espectador percebe que está diante de um “documentário” sobre a formação de um “mafioso moderno” numa penitenciária francesa. César Luciani força-o a executar uma tarefa, sem poder fugir. Depois, quando ele está maduro, o envia para fora da prisão, numa tarefa de grande complexidade, para finalmente transformá-lo num quase aliado.

Enquanto isto se dá, Malik, analfabeto, hesitante entre ser árabe ou francês, é instruído pela escola da penitenciária. Estabelece-se, desta forma, a dualidade de seu aprendizado: o do crime, através de Luciani, e da educação formal, via sistema prisional francês. Ambos irão ajudá-lo a se conduzir no intrincado labirinto em que passa a viver e a criar seu próprio sistema.

Eis a estrutura deste “O Profeta”, que deve muito aos antigos dramas de prisão. Audiard, ao contrário dos diretores que o precederam, atualiza as relações entre presidiários e a direção do presídio. Esta quase não é vista; apenas alguns de seus integrantes surgem em raras sequências. Sua presença, no entanto, é visível em cada ato ou frase de Luciani. Estão imbricados, são cúmplices nas ações da máfia corsa.

Luciani não poderia agir como o faz, caso não tivesse cobertura oficial. A corrupção, para Audiard, é onipresente. Existe para manter o crime organizado funcionando. Uma sequência entre Luciani e o carcereiro-chefe dá a medida desta sua visão. Luciani irrita-se com seu comparsa oficial e ameaça levá-lo a seus chefes. Só isto basta para ilustrar o que Audiard quer dizer.

Há uma disputa pelo mercado configurada em cassinos, caça-níqueis e drogas. E se dá, no caso, entre corsos e árabes para dominar a fatia que está em poder do outro grupo. Portanto um reflexo do capitalismo nas disputas entre ramos do crime organizado. Tão ferozes quanto às da concorrência oficial.

Audiard desglamouriza criminoso

Audiard nesta atualização do drama de prisão tece três subtramas importantes para a compreensão deste seu “O Profeta”. Primeiro ao mostrar que o aprendiz entra em contradição com seu mestre e ao fazê-lo vai absorvendo suas lições; o segundo a do servo que ao perceber-se explorado aprende como se move as peças do xadrez do poder, e o terceiro, a do árabe que, tratado como inferior por ser negro e estrangeiro, deixa-se usar para sobreviver.

E, desta maneira, Audiard, com uma narrativa simples, torna-a complexa, permitindo várias leituras, elevando seu filme a um alto patamar. O grande achado é desglamourizar o sistema prisional, a exemplo de “Carandiru”. O outro, não menos importante, é retirar de Luciani qualquer traço de Dom Corleone. Ele é brutal, manipulador, ardiloso, capaz de ser flexível com Malik para atingir seus fins. Porém, não percebe o aprendiz, que manipula. Malik compreende que para sobreviver precisa adquirir autonomia, entabular seus próprios acordos, até mesmo usar sua condição de árabe para enfrentar seu opressor.

É nesta subtrama, quase oculta, que Audiard mostra como entende o jogo político e as artimanhas do poder. Leva o espectador a torcer às vezes por Malik, pelos maus tratos que lhes são infringidos por Luciani, e refletir sobre o que este lhe ensinou a ponto de o servo buscar superá-lo. O intrigante desfecho confirma quem venceu. Um ardil de Audiard para confirmar sua opção por uma das partes. Isto porque em seu filme são corsos e árabes os líderes do crime organizado, os que fazem o jogo sujo. Os franceses são os que recebem por fazer vista grossa ao crime.

Visto assim, Audiard os retira da grande teia. Seria talvez uma forma de isentá-los. O que não é o caso; estão mais implicados do que qualquer autoridade prisional ou, portanto, da Justiça.  Um deslize que Audiard procura contornar no desfecho. O espectador verá sua opção: Malik soube flexionar, evitando que Luciani o engolisse. O final mostra seu triunfo não na forma vista na maioria deste tipo de filme, ele preferiu torná-lo simbólico. Pode ser uma boa saída ou um aviso. 


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O Profeta” (“Un Prophète)”). Drama. França. 2008. 155 minutos. Direção: Roteiro: Thomaz Bidegaim/Jacques Audiard. Direção: Jacques Audiard. Elenco: Tahar Rahim, Niels Arestrup, Adei Bencherif.

Cloves Geraldo é jornalista e cineasta, dirigiu os documentários “TerraMãe”, “O Mestre do Cidadão” e “Paulão, lider popular”. Escreveu novelas infantis,  “Os Grilos” e “Também os Galos não Cantam”.

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