A Missa dos Quilombos incomodou a ditadura ao cantar a dignidade do povo

Por Marcos Aurélio Ruy

No mês da Consciência Negra, destacar os 40 anos da Missa dos Quilombos é necessário para debater o papel da religião (no caso da igreja católica) e da cultura para defender os valores humanos. 

Com a coragem e os talentos de Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020), Pedro Tierra e Milton Nascimento, a missa desafiou dogmas de um regime autoritário e de uma igreja que se postava ao lado dos mais pobres, a Teologia da Libertação.

Era 22 de novembro de 1981. A capital de Pernambuco, Recife recebeu de braços abertos 8 mil pessoas para celebrar a céu aberto a Missa dos Quilombos. Desafiaram a ditadura fascista (1964-1985) e a mentalidade perversa e opressora contra quem vive do trabalho.

Ali foi celebrada uma missa muito diferente do que os conservadores do Vaticano estavam habituados a ver. Ao misturar os cânticos católicos com o batuque afro e toda mistura de sons da música de Milton Nascimento com uma poesia vigorosa em favor dos necessitados de Casaldáliga e Tierra, viu-se um sincretismo religioso jamais visto numa celebração da Igreja Católica

Dom Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento

As músicas na voz potente e singular de Milton, na missa, a poesia singela e afiada de Casaldáliga e Tierra, na celebração as vozes dos padres “vermelhos” (assim chamados pela ditadura) Dom Hélder Câmara (1909-1999) e Dom José Maria Pires, conhecido como Dom Pelé (1919-2017), um dos raros bispos negros do país.

Estava feita a comunhão perfeita entre o amor à causa da liberdade, aos direitos humanos e ao respeito à vida de todas as pessoas. A missa ocorreu dois dias após o 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, preso e morto pelos repressores, em 1695, a serviço da corte portuguesa. Hoje a data é marcada como o Dia Nacional da Consciência Negra.

As vozes se levantaram para protestar e denunciar a opressão e a exploração do homem pelo homem, ao abordar a perversidade do sistema escravista, que no Brasil durou quase quatro séculos à atualidade da exploração capitalista, que no século 21 dizima os direitos trabalhistas, sociais e individuais e quer destruir quem pensa diferente. 

Começaram cantando “estamos chegando do chão da oficina,/estamos chegando do som e das formas,/da arte negada que somos,/viemos criar” e resistir.

Só esse fato já bastaria para manter a atualidade dos cânticos profundamente coesos com a luta de todos os povos pela vida comum. Nestes tempos em que o autoritarismo e o elitismo insistem em permanecer, o canto de abertura da missa, “A de Ó” pode revigorar as forças da resistência à extrema direita, representada pelo presidente Jair Bolsonaro.

E os cânticos prosseguem com seus batuques marcantes, vozes firmes e resolutas e sermões. “Trazemos nos olhos,/As águas dos rios,/o brilho dos peixes,/a sombra da mata,/o orvalho da noite, o espanto da caça,/a dança dos ventos,/a lua de prata,/trazemos nos olhos/o mundo, Senhor!”

Foi nesse “ambiente opressivo da ditadura militar, já em declínio”, que “um negro – uma das mais elevadas expressões do talento, sensibilidade, criatividade e da voz na história da música brasileira –, um catalão errante que fez do Araguaia sua pátria e um sertanejo recém-saído dos cárceres, ofereciam sua contribuição e seu verso para introduzir em espaços sociais e culturais mais amplos um tema interditado na sociedade brasileira: o combate ao racismo”, escreveu o poeta Pedro Tierra sobre a efeméride da celebração eucarística que causou alvoroço nas mentes conservadoras do vaticano.

A história da Missa dos Quilombos

O disco em vinil (chamado de LP – Long Play) foi lançado em 1982 como um marco na Música Popular  Brasileira  com o vigor das melodias de Milton Nascimento, misturando além do rock, dos sons regionais de Minas Gerais, da música latino-americana e da própria MPB, o batuque dos seres humanos africanos escravizados por quase quatro séculos, no último país do Ocidente a abolir a escravidão.

Muito mais que uma missa, a eucaristia significou e significa ainda hoje um ato revolucionário ao enfrentar os generais de plantão e cantar a dor de um povo humilhado, aprisionado, torturado, famélico, escravizado, mas que mereces ser feliz e um dia vai se juntar para isso.

“Os fiéis assistiram ali um rito romano, que obedecia rigorosamente ao cânone católico. Não fora concebido como um espetáculo. Mas, como uma confissão pública de cumplicidade com o massacre de uma raça, em nome da exploração colonial. Com todos os seus momentos e componentes, tratava-se de uma missa”, acredita Tierra

Uma visão crítica da atuação da Igreja Católica que defendeu a escravidão, foi opressora e, ainda é no pensamento e na vontade de alguns setores eclesiásticos, felizmente minoritários. A Missa dos Quilombos é um alento até para um ateu (graças da Deus) como eu, que vê na figura de Casaldáliga um candidato à santificação. E qual, o seu milagre? O milagre da resistência aos opressores, da dedicação aos que necessitam, aos oprimidos. O milagre da vida. 

A peça de teatro Missa dos Quilombos, de 2002

O ato religioso denunciou a visão errada do cristianismo que possibilitou, e ainda possibilita, a transformação de pessoas em propriedades de outras pessoas. Permite a usurpação em nome de Deus, da acumulação de riquezas, que promove a destruição do planeta e da humanidade. 

A força da crença em uma igreja dedicada aos mais necessitados, a Missa dos Quilombos denunciou também a ditadura, o racismo forjado pelos grilhões da senzala em benefício da casa grande, como se fosse natural a escravidão. Mais que tudo, a missa vislumbrou o futuro. “Um mundo sem senhores e sem escravos. Um mundo de irmãos”, como disse em seu sermão, Dom Hélder Câmara. E não é por isso que se luta ainda hoje?

“Estamos chegando do chão dos quilombos,

estamos chegando no som dos tambores,

dos Novos Palmares nós somos,

viemos lutar”

A de Ó (Estamos Chegando, 1981, de Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra)