12 de outubro: deixar a criança ser criança

 O conceito de infância, com todo seu sentido de proteção e das particularidades que uma criança possui, é uma construção histórica que se consolidou no séc. XVIII. Anteriormente, a criança era vista como um adulto em forma pequena, que um dia chegaria a fase adulta naturalmente. Para a evolução desse conceito, a representação da infância na imprensa e na arte foi fundamental; o modo de se pensar e conduzir as crianças evolui principalmente com a concepção do homem letrado e com a ampliação do alfabetismo. A partir desse período, a criança, para se tornar adulto, tinha que aprender a ler e escrever, consequentemente, precisava de educação. Com isso, a sociedade tem a necessidade de reinventar a escola e o modo de se lidar com a infância.

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Nesse sentido, o trabalho infantil é uma das piores formas de exploração social, pois priva exatamente a criança de ser criança. Além de todo o problema de caráter material e falta de recursos que obrigam uma família a submeter um filho ou uma filha ao trabalho, há toda uma questão de mentalidade, principalmente na sociedade brasileira. 

O Brasil apresenta uma longa tradição de exploração ao trabalho infantil, iniciada desde o século XVI, quando as terras brasileiras começaram a ser povoadas e crianças eram trazidas para cá com os portugueses. Na sociedade escravista, as crianças brancas possuíam escravos aos quais distribuíam ordens aos gritos. Esse abuso pode ser lembrado numa passagem do “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, quando o protagonista relata com cinismo, que fazia seu escravo, com quase a mesma idade com ele, de cavalo até suas pernas e cotovelos sangrarem. Dos escravos que vieram para o Rio de Janeiro, no início do século XIX, quatro por cento eram crianças. Destes, um terço sobrevivia até os dez anos.

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Além dos escravos, as crianças pobres sempre trabalharam neste país, em meio a um universo adulto de extremas dificuldades. Desde os primórdios da colonização, a criança trabalhou, para os grandes proprietários de terras como bóias-frias; dentro das casas, com a produção artesanal ou agrícola; e finalmente nas ruas, para se manterem a si e sua família. Como se pode observar, a sociedade brasileira possui uma tradição assentada na exploração ao trabalho de crianças e adolescentes, recrutados por constituírem-se em mão-de-obra vasta e virtualmente dócil, pela fragilidade. Pesquisas mostram que 23% das crianças entre dez e quatorze anos, oriundas de famílias que ganham até meio salário mínimo mensal por pessoa, trabalham. Quando a renda familiar aumenta, a taxa de atividade infantil diminui, entretanto não é apenas a necessidade que leva o menor ao trabalho.

A cultura de que criança não pode ficar desocupada e deve ser moralizada, principalmente quando ela é desobediente, malcriada e rebelde. Há um estudo que aponta sete mitos que levam a criança ao trabalho:
a) é melhor trabalhar do que roubar;
b) é melhor trabalhar do que ficar nas ruas;
c) o trabalho da criança ajuda a família;
d) lugar de criança é na escola;
e) é melhor trabalhar do que usar drogas;
f) trabalhar não faz mal a ninguém;
g) trabalhar desde cedo acumula experiência para trabalhos futuros. (Custódio, André V. A exploração do trabalho infantil doméstico no Brasil contemporâneo: cf. Custódio, 2006: 214)

Com isso, há uma legitimação perversa do trabalho infantil, que gera; a) dificuldade de acesso, permanência e frequência, da criança, à escola; b) evasão precoce; c) baixo rendimento escolar; d) a reprodução da exclusão educacional; e) reprodução do ciclo gerador de pobreza, f) ausência de pagamento ou pagamento de salários ínfimos; g) a precarização das relações de trabalho; h) o reforço da dependência econômica da família ao trabalho da criança; i) a substituição da mão-de-obra adulta, pela infantil e, em consequência, o aumento do desemprego adulto; j) a desmobilização social; l) o isolamento da criança e do adolescente; m) a legitimação da omissão do Estado; n) o reforço da cultura patriarcal e machista; o) a transferência da responsabilidade do adulto para a criança; o) o prejuízo ao desenvolvimento físico e psicológico da criança, assim como a violação dos seus direitos fundamentais; apenas para citar alguns dos males. O trabalho na infância e na adolescência é, dessa forma, a principal causa da evasão de crianças e adolescentes da escola. Muitos, em decorrência das longas jornadas, acabam empurrados para cursos noturnos, a que chegam cansados, aumentando as estatísticas de evasão e um mau desempenho inevitável.

Mas, o discurso em favor que a criança deve ser educada, de qualquer forma, ganhou força no Brasil, à medida que vozes se ergueram contra o trabalho infanto-juvenil, na perspectiva do sério comprometimento que causava à saúde de crianças e adolescentes. Com isso, também surgiu, principalmente no período da ditadura militar, as políticas sociais implementadas pelo governo, como a criação da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e das FEBEM (Fundação do Bem-Estar do Menor). A Política Nacional do Bem-Estar do Menor, em sintonia com a Lei de Segurança Nacional, criou uma rede de correção repressiva, mascarada sob a forma de assistência social, a partir do autoritarismo do regime militar. O isolamento como forma de contenção, a disciplina, a moralização e o trabalho para a obtenção da obediência, visando à domesticação, eram práticas autorizadas com a finalidade de garantir a segurança nacional, baseado nos princípios de “ordem e progresso”.

E ainda hoje, essa ideologia é dominante. Entretanto, também é evidente que a maior causa do trabalho infantil é a enorme desigualdade social.

 Por Raul Duarte

 

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