Como o e-commerce devasta os trabalhadores comerciários

Desde 1995, quando foi liberado o comércio eletrônico (e-commerce) no Brasil, o segmento vem crescendo de maneira notável, intensificando-se pela necessidade de isolamento social provocado pela pandemia e pela alteração dos hábitos de consumo das famílias brasileiras. Os dados da pesquisa realizada pela Ebit/Nielsen sobre o comércio eletrônico brasileiro comprovam este comportamento ao mostrar que nos últimos dez anos o faturamento do comércio digital no Brasil saiu dos R$ 18,7 bilhões para R$ 87,4 bilhões, um crescimento de 367%. Em 2020, foram 543 milhões de pedidos via internet.

O resultado desta pesquisa estimou, ainda, que as vendas em 2021 alcançariam R$ 110 bilhões, representando um aumento de 26% na comparação com o ano anterior. Apenas no primeiro semestre de 2021, o e-commerce no Brasil bateu recorde de vendas, atingindo R$ 53,4 bilhões, representando um crescimento de 31% em relação ao mesmo período do ano anterior. Assim, embora ainda seja relativamente pequena a participação das vendas do e-commerce no comércio total, entre os anos de 2019 e 2020 ela quase dobrou, passando de 5,4% para 10,0%.

Nesse contexto, grandes redes varejistas têm investido na ampliação de plataformas eletrônicas. Ainda segundo dados da Ebit/Nielsen, em 2020 os pedidos desse tipo cresceram 43% quando comparados aos do ano anterior. As transformações no varejo, com intensificação da compra digital, ocorrem, evidentemente, em paralelo e como consequência do próprio crescimento do acesso dos/as usuários/as ao meio digital, via computadores, tablets e celulares. Assim, em 2020, as vendas por meio de dispositivos móveis representaram 55,1% do total das transações realizadas via varejo virtual.

A intensificação e o crescimento do comércio eletrônico parecem ser um caminho sem volta, dado que a busca por vender mais e para mais pessoas tem sido a grande estratégia dos varejistas, para os quais a venda por internet representa expressiva redução de custos operacionais e com a força de trabalho. Para o/a consumidor/a, o e-comércio significa a loja “aberta 24 horas por dia”, a oportunidade de pesquisar, comparar preços, vantagens, serviços e ter acesso a uma gama maior de produtos, muitas vezes a preços mais atrativos.

Por outro lado, possui a grande desvantagem de não ter um/a profissional que entende do negócio para auxiliá-lo/a na compra, sendo necessário dedicar muito mais horas para a realização da compra. Além disso, considerando a grande desigualdade sociodigital existente no Brasil, isso significa que uma parte expressiva da população está excluída deste processo, seja pelo fato de não ter os instrumentos necessários (computadores, tablets e celulares), dispor de uma internet de baixa qualidade ou, ainda, não ter as habilidades necessárias para utilizar os meios digitais1.

Para o/a vendedor/a da loja física, a venda online pode representar mais trabalho e redução da remuneração, uma vez que a sua jornada é dedicada à venda física e parte, ou mesmo a totalidade, do seu salário, é composta por comissão, que ele/a deixa de receber. O/a vendedor/a atrai o público, atende, retira as dúvidas, estimula o consumo, mas não necessariamente recebe pelo trabalho, pois o cliente pode comprar o mesmo produto pela internet – utilizando seu o celular ou tablet dentro da própria loja.

Sabe-se que, em algumas empresas, o/a vendedor/a não consegue cobrir o preço da loja virtual, tampouco vender o mesmo produto da internet. Já em outras empresas, ele/a consegue vender o produto do site, como se fosse o/a próprio/a cliente realizando a compra. Contudo, neste caso, como o/a vendedor/a acaba acessando documentos do/a cliente, como o cartão de crédito, isso o/a deixa vulnerável em caso de furto dos dados financeiros do/a cliente. Ainda que tudo dê certo e a venda se concretize, essa venda – feita através do site da loja – não será computada nas metas da loja física e o/a trabalhador/a não receberá a comissão correspondente.

O atual contexto de aumento das vendas pela internet explicita a necessidade de uma relação cada vez mais segura em relação ao uso e tratamento de dados pessoais, com direito à privacidade e à proteção de dados dos/as usuários/as, por meio de práticas transparentes e seguras nas relações de consumo. Mas não são somente as plataformas eletrônicas que estão trazendo impactos importantes no “chão” de loja.

Há várias outras mudanças tecnológicas que poderão reduzir as contratações, na medida em que possibilitam a ampliação dos negócios com um número cada vez menor de trabalhadores/as. Algumas feiras internacionais de tecnologia já expõem robôs2, aplicativos de tablet ou startups de inteligência artificial para uso em lojas físicas, com o objetivo de fechar negócios ou atender clientes.

Essas inovações representam possibilidades tentadoras para os/as varejistas e, ao mesmo tempo, colocam questões preocupantes do ponto de vista social sobre o futuro das ocupações no comércio. Será o fim do trabalho dos/as vendedores/as?

Apesar de muitos/as empresários/as do ramo enfatizarem que a tecnologia não fará a substituição completa – mas que pode reduzir funções, complementar ou alterar tarefas dos/as comerciários/as –, já está claro que haverá esvaziamento das ocupações tradicionais no comércio num futuro não muito distante. Algumas dessas mudanças já estão em curso. É o caso, por exemplo, dos caixas automáticos3, sem a presença humana em lojas ou supermercados nos EUA e em países da Europa, e que recentemente foram adotadas no Brasil. Aliás, como foi visto no setor bancário nos anos 1990, quando os caixas eletrônicos foram tomando o lugar dos/as trabalhadores/as.

Do ponto de vista do/a consumidor/a algumas questões também são colocadas pois este/a passa a assumir, cada vez mais, o trabalho antes realizado pelos/as trabalhadores/as: como analisar um produto, comparar preços, empacotar, passar produtos no scanner, dentre outras tarefas.

Diante desse cenário e do enorme espaço para o crescimento do comércio eletrônico, é importante trazer essa discussão junto aos/as comerciários/as, ao movimento sindical e ao poder público para buscarem novas estratégias de ação frente as transformações em curso. Ações no sentido de garantir que as novas configurações do trabalho, impostas pela forma como o capital se utiliza da tecnologia, sejam reguladas de forma a garantir proteção social aos/às trabalhadores/as, bem como aos/às consumidores/as.

Nesse contexto, os sindicatos, enquanto representantes e defensores das demandas e direitos da classe trabalhadora, têm papel fundamental. É necessário que os frutos das inovações sejam partilhados pelos/as trabalhadores/as e pela sociedade como um todo, gerando novas oportunidades de emprego com trabalho decente. Ao mesmo tempo, é preciso que se estabeleça uma nova agenda que reafirme os direitos sociais e que valorize o trabalho como ferramenta indispensável para o crescimento econômico com distribuição de renda, redução das desigualdades sociais, regionais, raciais e de gênero, e preservação ambiental, em direção a um projeto de desenvolvimento transformador da realidade brasileira.

NOTAS

1) Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. Desigualdades digitais no espaço urbano: um estudo sobre o acesso e uso da Internet na cidade de São Paulo. Cadernos NIC.br, Estudos Setoriais. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2019.

2) Os robôs agora sabem vender. É o fim da profissão de vendedor? Washington Post, Nova York, 24 de janeiro de 2017. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/inteligencia-artificial/os-robos-agora-sabem-vender-e-o-fim-da-profissao-de-vendedor-3hicit3orf64skt9gmzz224uk/. Acesso em: 11/11/2021

3) Caixas de supermercado podem se tornar obsoletos. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 de junho de 2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/06/1893959-caixas-de-supermercado-podem-se-tornar-obsoletos.shtml. Acesso em: 11/11/2021

* Carolina Gagliano, socióloga e mestre em Ciência Política, assessora a Subseção do Dieese no Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Diego Romano, cientista social, é assessor da CUT na Secretaria de Relações do Trabalho. Daniela Barea Sandi, economista, é assessora do Escritório Regional do Dieese no Rio Grande do Sul. Fabiana Carla S. Campelo, economista, é assessora da Subseção do Dieese no Sindicato dos Comerciários de São Paulo.

Fonte: Outras Palavras