Por Marcos Aurélio Ruy (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Dando sequência à série de matérias sobre a necessária tarefa de combater a exploração do trabalho infantil, esta entrevista com a juíza do Trabalho, Daniela Valle da Rocha Muller, mestra em políticas públicas em Direitos Humanos no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos, órgão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, abarca os fundamentos essenciais da necessidade de uma infância feliz.
“Talvez a primeira tarefa seja acabar com uma divisão, ainda muito presente na sociedade brasileira entre ‘crianças’ e ‘menores’. Enquanto ao primeiro grupo, normalmente, se reconhece o direito ao amparo, proteção e acesso aos meios de desenvolvimento pessoal, o segundo grupo é estigmatizado, visto como naturalmente perigoso, delinquente, enfim, pessoas que já nasceriam com uma ‘má índole’”, diz Daniela.
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Ela remete à profunda desigualdade na sociedade brasileira, principalmente com o atual governo no qual ricos ficam mais ricos e pobres cada vez mais empobrecidos.
Para a juíza do Rio de Janeiro, “as principais políticas públicas, no momento, consistem na garantia de renda e acesso gratuito ao sistema de saúde, o que já reduz consideravelmente a necessidade das famílias mais vulneráveis exporem suas crianças ao trabalho infantil. As medidas mais urgentes, em razão da pandemia e também do aumento exponencial da pobreza, são a garantia de renda básica universal e fortalecimento do SUS”.
Além disso, diz Daniela: “O trabalho infantil é um problema social, e não apenas das vítimas e de suas famílias, portanto, deve ser enfrentando por todos nós, em conjunto”.
Vamos à íntegra da entrevista:
O que fazer para combater o trabalho infantil numa sociedade conservadora como abrasileira, que ainda não se deu conta que 2021 é o Ano Internacional pela Eliminação do Trabalho Infantil?
Daniela Valle da Rocha Muller: Talvez a primeira tarefa seja acabar com uma divisão, ainda muito presente na sociedade brasileira entre “crianças” e “menores”. Enquanto ao primeiro grupo, normalmente, se reconhece o direito ao amparo, proteção e acesso aos meios de desenvolvimento pessoal, o segundo grupo é estigmatizado, visto como naturalmente perigoso, delinquente, enfim, pessoas que já nasceriam com uma “má índole”.
Segundo nossas estruturas sociais são reconhecidas como “crianças” os que carregam marcas da elite, especialmente ligadas à raça, classe e gênero, um grupo seleto no qual valeria a pena investir em prol do “futuro da nação” e que, portanto, deve ser preservado do trabalho infantil. Já a grande maioria dos infantes brasileiros, identificados como não brancos/as, pobres e fruto de relações promiscuas, é vista como um grande fardo e um risco social, e por isso devem estar disciplinados pelo trabalho subordinado desde muito jovens. Justificativas como a de que “é melhor do que roubar” acabam naturalizando a exploração do trabalho infantil daqueles identificados como “menores”.
Portanto, acredito que o primeiro passo para combater a exploração ilegal do trabalho infantil é enfrentar o preconceito que divide os indivíduos em formação entre “menores” e “crianças”, de modo que todos recebam efetivamente a proteção integral prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A pobreza agravou na pandemia e o trabalho infantil cresceu, que políticas públicas são necessárias para impedir esse avanço?
As principais políticas públicas, no momento, consistem na garantia de renda e acesso gratuito ao sistema de saúde, o que já reduz consideravelmente a necessidade das famílias mais vulneráveis exporem suas crianças ao trabalho infantil. As medidas mais urgentes, em razão da pandemia e também do aumento exponencial da pobreza, são a garantia de renda básica universal e fortalecimento do SUS.
É necessária, ainda, uma política que invista no acesso à educação, e também uma reformulação do ensino básico para que seja mais atraente às crianças mais pobres. Mesmo no sistema público nossa educação tem por referência a elite do país, um universo muito distante da realidade da maior parte das crianças e que as afasta das escolas.
Contudo, ainda há uma forte cultura de exploração do trabalho infantil e até mesmo a crença de que ele seria necessário para a formação de pessoas honestas. Nesse caso, além de aperfeiçoar e investir nos mecanismos de combate e prevenção da exploração do trabalho infantil, também é importante investir em campanhas que esclareçam os seus malefícios, questionar os preconceitos sociais que o legitimam e naturalizam.
Esse aspecto é fundamental para que a sociedade, como um todo, se envolva nesse enfrentamento. Ainda hoje há muita desconfiança em relação aos agentes que combatem o trabalho infantil, como auditores e procuradores do trabalho, muitas vezes vistos como “inimigos”. Para que haja um maior engajamento no combate ao trabalho infantil é fundamental investir no esclarecimento e amplo debate sobre o tema.
Quais as consequências para o desenvolvimento de crianças e adolescentes com a exploração do trabalho infantil?
Trabalho infantil é aquele que gera renda para garantir do sustento da própria criança e/ou de sua família. É caracterizado pela exploração do trabalho subordinado e constante. É absolutamente proibido antes dos 14 anos e entre 14 e 16 anos só pode ser realizado na condição de aprendiz.
Apesar do senso comum acreditar que o trabalho infantil traria benefícios para a formação pessoal, o que se observa é exatamente o contrário. Há grande prejuízo para a saúde física e mental das crianças, mais suscetíveis aos acidentes de trabalho e que muitas vezes realizam atividades incompatíveis com sua compleição física, pois seu corpo ainda está em formação.
Além disso, a responsabilidade excessiva e a obrigatoriedade da atividade remunerada privam essas crianças de atividades lúdicas essenciais para o desenvolvimento saudável. Brincar com outras crianças, conviver com vizinhos e familiares, ter tempo livre, tudo isso é fundamental para a formação de um adulto saudável. Muitos estudos apontam que a supressão dessas atividades e momentos lúdicos, na infância, é fator de risco para violência e alcoolismo na fase adulta.
Por fim, o trabalho infantil também dificulta a conclusão do ciclo escolar básico o que gera um grande número de trabalhadores sem qualificação que, na fase adulta, tem dificuldade de acesso aos melhores postos de trabalho, exercem atividades precárias e mal remuneradas, alimentando o ciclo de desalento, pobreza e abandono que pretendemos superar, enquanto nação.
Como mudar a mentalidade da sociedade que acredita que o trabalho infantil faz bem?
Acredito que para superar a crença de que o trabalho infantil é positivo seria necessária uma maior divulgação dos seus efeitos nocivos, investir em campanhas de esclarecimento e, também, em estudos sobre os mecanismos que alimentam esse mercado de trabalho dócil e barato. Além disso, considero essencial incluir o tema no currículo escolar. O trabalho infantil é um problema social, e não apenas das vítimas e de suas famílias, portanto, deve ser enfrentando por todos nós, em conjunto.