Sobre rodas e trilhos: a luta da classe trabalhadora nos transportes públicos

Historicamente, os transportes públicos possuem papel central na deflagração de importantes movimentos sociais

Em 1 de dezembro de 1955, a costureira afro-americana Rosa Parks (1913-2005) foi presa por recusar-se a ceder seu assento no ônibus a um homem branco. O escândalo engatilhou um boicote ao transporte público da cidade que precipitou o movimento por direitos civis dos negros.

Em 27 de fevereiro de 1989, o governo venezuelano massacrou os trabalhadores e trabalhadoras de Caracas, jogando o exército contra os manifestantes. O estopim para o movimento, que ficou conhecido como “Caracaço”, foi o aumento no preço dos transportes. Os apedrejamentos, saques e incêndios eram sintoma de um país com 85% da população abaixo da linha da pobreza.

Em 13 de junho de 2013, um pequeno grupo de manifestantes tomou a Avenida Paulista, em São Paulo, exigindo a gratuidade dos sistemas de ônibus, metrô e trem na metrópole. A resposta violenta da PM disparou uma onda de revolta que culminou com milhões de pessoas indo às ruas – manifestação que foi desviada de seu propósito original e capturada por setores da direita com finalidades explicitamente políticas.

Em 28 de abril de 2017, a paralisação do metrô, dos ônibus e dos portos em diversos estados do país, convocada pelas centrais sindicais, foi decisiva na deflagração de um evento histórico: a maior greve geral dos últimos 21 anos. A adesão dos transportes à greve foi fundamental para que o movimento alcançasse a dimensão que teve.

Todos estes eventos ressoam um mesmo tema: a centralidade do transporte na mobilização dos trabalhadores. A urbanização crescente no século XX, aliada ao aumento populacional e às concentrações industriais, trouxeram o desafio de deslocar-se por grandes distâncias diariamente. A mobilidade tornou-se, literalmente, questão de sobrevivência.

caracazoO Caracazo acabou com mais de 2 mil feridos, seguindo uma revolta pelo direito a tarifas mais baratas, e projetou Hugo Chávez como liderança (Fotos: BBC)

Para refletir sobre o tema, a Revista Visão Classista falou com três especialistas: o coordenador-geral do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Wagner Fajardo; o ex-diretor do Sindicato dos Condutores de São Paulo, Zé Carlos Negrão; e o presidente da Federação dos Arrumadores e Conferentes Portuários e dirigente cetebista, Mario Teixeira. Os três enxergam no setor uma função estruturante para a mobilização da classe trabalhadora.

“Evidentemente, as nossas ações têm um impacto direto no dia-a-dia de outros. Quando o porto para, por exemplo, toda a área de transporte também para. Isso afeta o transporte rodoviário, altera o transporte ferroviário e o aquaviário. Além do prejuízo financeiro, a paralisação afeta a mobilidade de toda a região”, explicou Teixeira. “Isso gera uma força de negociação extraordinária”.

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Fajardo encara essa disputa com mais ceticismo. “Ainda hoje, o transporte público e urbano não é prioridade para os governos. Há um problema de concepção do direito – o cara prefere ter um bom carro a ter um bom ônibus”, criticou. Ele vê nisso um segundo problema: “Essa concepção individualista está arraigada a tal ponto que se torna prioridade. O automóvel passou a ser o bem mais importante”.

Para Zé Carlos Negrão, o desvirtuamento do debate foi agravado ao cair nas mãos de empresas privadas. “Quando eles decidiram privatizar [o sistema de ônibus], a primeira coisa que ouvimos foi aquele velho discurso do ‘custo’ e da ‘corrupção’. Agora está provado que os empresários não têm perfil de honestidade. Mas o sistema já é deles, e carrega uma visão de lucro em primeiro lugar”.

A luta de classes em movimento

A complexidade operacional torna a arena dos transportes simbólica para a luta de classes. De um lado, a burguesia revela seu impulso privatizante, buscando os ramais mais lucrativos e abandonando os restantes; de outro, o proletariado exige tarifas mais acessíveis e maiores malhas. No meio desse embate, a pequena burguesia adquire seus próprios meios privados, e o Estado busca contemplar os interesses do empresariado sem provocar revolta nos usuários.

“Por se tratar de um serviço essencial, esse mercado não poderia estar 100% na mão dos empresários”, explicou Negrão. Ele argumentou que é preciso haver alguma participação estatal, para formar técnicos e balizar o trabalho dessas empresas. A complementação impediria a degradação e o encarecimento, da mesma forma que as linhas estatais do metrô impedem excessos nos ramais privatizados.

metro pinheiros lotadoMetrô Pinheiros, em São Paulo, depois de uma falha. “A precarização é parte do projeto de primazia do transporte privado”, avalia Jose Carlos Negrão (Foto: Will Nath)
Já na experiência de Fajardo, a mera partilha não é suficiente. “A população precisa se envolver de forma permanente. Não existe nenhum movimento para uma empresa pública de transporte. O único elemento mobiliza a população é a tarifa”, observou.

Negrão também enxerga o erro estratégico: “Aquela movimentação de 2013 se deu exclusivamente para que houvesse a redução. Ela não pedia o transporte público. Mas você não pode pedir uma redução de tarifa sendo que a empresa não é sua, não é da cidade. Se o transporte não é estatal, fica difícil. Ninguém sabe direito o custo da tarifa dos ônibus!”.

Atualmente, quem fornece as informações que a SP Transportes usa para negociar valores e subsídios são as próprias concessionárias. Isso cria uma contradição, na qual essas operadoras são recompensadas por distorcerem seus números. Se uma empresa decide circular seis ônibus por hora, mas relata dez, a prefeitura não pode questioná-la. O mesmo se aplica a cada fator que compõe o custo do bilhete: custo do diesel, reposição de peças, gastos com manutenção. Uma empresa pública ajudaria o governo a mensurar com mais exatidão os custos operacionais, dificultando fraudes.

“Números produzidos sem auditoria são uma caixa preta, e os movimentos não estão interessados nisso”. O condutor elencou formas variadas para reduzir o preço das tarifas sem comprometer o equilíbrio do sistema, como a redução da margem de lucro ou a criação de isenções fiscais para insumos.

Os portuários também estão sujeitos a esse dilema. Nos portos, ela se manifesta nas tarifas, conta Mário Teixeira: “Há uma máfia estabelecida entre as empresas de transporte marítimo, que operam para aumentar o preço para os concorrentes e, por extensão, toda a população. É um mercado muito oligopolizado, e as empresas estrangeiras vêm ao Brasil comprar terminais. Estamos sujeitos a um cartel muito poderoso”.

A difícil resposta para a mobilidade

A ambiguidade do debate sobre a mobilidade se dá porque, enquanto trabalhadores e poder público buscam formas de desafogar o sistema, empresários tentam canalizar essa demanda para o lucro. “A primeira coisa é inverter essa lógica. Precisamos eleger governos que tenham coragem de priorizar o público”, sugeriu Fajardo. O metroviário elogiou a gestão de Fernando Haddad em São Paulo, que criou mais de 400 km de corredores de ônibus, baixou os limites de velocidade para níveis mais seguros e abriu ciclovias e ciclofaixas.

estudantes ocupacao camara spA União Estadual dos Estadantes de São Paulo ocupou no inicio de agosto a ALESP, depois que o prefeito Joao Doria ameaçou cortar o Passe Livre (Foto: UEE-SP)

“Ele fez isso sem poder contar com o governo federal, que jogou contra o transporte urbano. Aí perdeu a eleição exatamente porque fez isso – olha a contradição!”, lamentou. “A população ainda não entendeu, o discurso está incompleto. Aquele ‘não’ ao aumento de tarifas puxado pelos estudantes acabou assim que o prefeito abriu algumas isenções. Como não havia debate, o ‘cala boca’ funcionou, e logo se passaram dois anos sem aumento. Aí a prefeitura fica num dilema: ou ela aumenta a tarifa, ou ela aumenta o subsídio, porque não controla nada”.

Negrão enxerga um cenário cuidadosamente planejado de estagnação do transporte coletivo. “Você pega o metrô do México, que começou bem depois do nosso – eles já estão com mais de 200 km de metrô, enquanto ainda estamos com 70, 80km. Seria preciso expandir a malha, integrar os ônibus ao metrô, colocar mais corredores, desenvolver uma política 24 horas… Eliminar por completo a dependência do carro!”.

O primeiro passo é ganhar a consciência pública. Mas Mário Teixeira desabafa: “Nós enfrentamos uma situação frustrante. Na última greve que fizemos, no 1º de Maio, todo mundo ficou sabendo em Buenos Aires, mas os próprios brasileiros não! A imprensa nacional não divulga nossas mobilizações, procura esconder”. E assim também aconteceu com a Greve Geral de 28 de abril.

A oligarquia parece encontrar o lugar errado para ocupar, como sempre. Aos trabalhadores, resta resistir.

Por Renato Bazan – Portal CTB – Matéria orignalmente publicada na Revista Visão Classista

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